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Entrevista da Semana Segunda-feira, 18 de Abril de 2016, 07:59 - A | A

18 de Abril de 2016, 07h:59 - A | A

Entrevista da Semana / Absolutamente contra

"A inclusão dos casos de violência doméstica nas audiências de custódia é um retrocesso", diz promotora

Entendimento é da promotora Lindinalva Rodrigues, que há dez anos atua em favor das mulheres vítimas de violência

Antonielle Costa



Há mais de 10 anos atuando em favor das mulheres vítimas de violência doméstica, em decorrência do gênero, a promotora Lindinalva Rodrigues é absolutamente contra as audiências de custódia nesses casos.

Em entrevista ao Ponto na Curva, ela defendeu a aplicação da Lei Maria da Penha, que para ela é um das melhores leis do mundo, mas classificou como um retrocesso à inclusão dos casos de violência doméstica nas audiências de custódia.

Lindinalva explicou ainda que aguarda um posicionamento da Corregedoria Geral e do Tribunal de Justiça quanto ao caso e que se mantida as audiências sejam realizadas por operadores de direito que possuem experiência na área e não dá forma que ocorre hoje.

Veja abaixo a íntegra da entrevista:

Ponto na Curva – Há quanto tempo à senhora atua em prol das mulheres vítimas de violência doméstica?
Lindinlava Rodrigues - Há dez anos. Eu atuo nessa área desde que a Lei Maria da Penha entrou em vigor, fui a primeira profissional no país a aplicar a Lei Maria da Penha no Brasil, então nós estamos aí, entramos como grande protagonista nessa área e estamos até hoje lutando contra violação de gênero que nós vemos todos os dias acontecer com as nossas mulheres.

Ponto na Curva Quais os benefícios que a Lei Maria da Penha trouxe as mulheres vítimas de violência doméstica?
Lindinlava Rodrigues - Primeiro nós vimos o grande alento e anseio que a Lei Maria da Penha trouxe, a grande visibilidade que a Lei Maria da Penha trouxe para a questão da violência doméstica e em contrapartida a Lei 9.099 que tratava esses ciúmes como de menor potencial ofensivo. Então as mulheres a partir da Lei Maria da Penha, elas passaram a ficar mais empoderadas, esses crimes passaram a ser debatidos seriamente pela sociedade, ou seja, esses crimes deixaram de ser invisíveis e passaram realmente a serem tratados com a seriedade que deveriam sempre ter tido pelo operador jurídico, mas nós sabemos que ainda há muito preconceito nessa área por parte do operador jurídico e que a Lei Maria da Penha sofre no ordenamento jurídico do mesmo preconceito que a mulher sofre na sociedade.

Ponto na Curva - O que vem a ser esse preconceito no ordenamento jurídico que a senhora se refere?
Lindinalva Rodrigues - A lei não é falha, é uma lei muito boa, considerada uma das melhores do mundo, só que não adianta termos uma lei de primeiro mundo, se nós ainda vivemos em um país machista e preconceituoso, se nós operadores jurídicos ainda acompanhamos essa mesma cultura de preconceito e de machismo. Nós temos operadores jurídicos extremamente preconceituosos ainda. Fui convocada, por exemplo, para auxiliar a CPMI da Violência Doméstica no Congresso Nacional, uma CPMI Mista tanto da Câmara dos Deputados quanto do Senado Federal, onde nós tivemos uma oportunidade de rodar o país inteiro com os parlamentares para ver como a Lei Maria da Penha estava sendo aplicada no país e nós tivemos a certeza que a Lei Maria da Penha não é aplicada no país e nós tivemos a certeza de que a Lei Maria da Penha não é aplicada no Brasil, ela é aplicada em algumas capitais e de forma muito precária sem se dar a prioridade que a lei exige, sem termos nenhum Centro de Reeducação para esses agressores, sem termos um local adequado para que os homens que tem problema com álcool e com drogas, que são 30% desses agressores, possam ter esse reestabelecimento e esse tratamento devido para que eles não voltem a delinquir. Então não adianta dizer que nós aplicamos essa Lei Maria da Penha no Brasil ou que a Lei Maria da Penha do Brasil é falha, quando ela sequer é aplicada devidamente principalmente no Interior porque essas práticas falham até mesmo na Capital, quanto mais no Interior, onde essa lei realmente ainda não chegou para as mulheres das cidades pequenas onde não há as Varas Especializadas, as Promotorias Especializadas.

Ponto na Curva - A lei é destinada a atender quais vítimas de violência doméstica?
Lindinalva Rodrigues - As vítimas são as mulheres que sofrem violação de gênero, praticadas por pessoas da família ou por quem eles tiveram algum tipo de relacionamento, de afeto ou familiar. É necessária que se tenha uma relação de gênero, é necessário que o homem tenha com essa mulher algum tipo de vinculo obsessivo, algum tipo de ex, algum tipo de ação persecutória, ou seja, não pode ser qualquer mulher, ele quer aquela mulher, o homem desenvolve uma visão da mulher, nesses casos, onde ele se vê como um ser superior a essas mulheres, ele se acha superior a ela, ele culturalmente acha que deve ser obedecido e quando ele não é obedecido ele agride essa mulher fisicamente. Ele quer fazer impor sua vontade através da força física e a isso nós chamamos de violência de gênero, ou seja, por conta da opressão que desde os inícios dos tempos as mulheres sofrem numa sociedade machista e preconceituosa, extremamente masculina ainda, onde as mulheres ainda são vistas de segunda categoria, onde as mulheres não são vistas ainda como seres humanos completos, onde as mulheres são vistas como uma pessoa que precisa de um complemento, precisam de um homem para chamar de seu, onde as mulheres sozinhas são chamadas de coitadas, encalhadas, mal amadas, como se ela não fossem seres humanos completos se não tivessem um homem do lado. Todos esses conceitos negativos são introjetados pela mulher, que em um dado momento faz de tudo para salvar uma relação, ainda que abusiva e passa então, pela cobrança da sociedade e dar muitas chances para o abusador, que diz o tempo todo que ele vai mudar, vai melhorar e a sociedade cobra dessa mulher ‘ruim com ele, pior em ele’, ‘é melhor você viver com o pai se deus filhos’, a sociedade quer então sacrificar a felicidade, muitas vezes a vida dessas mulheres para salvar o casamento e a união afetiva e essa mulher acha que ela é sozinha responsável para salvar essa união familiar. Então todos esses conceitos negativos introjetados pela mulher como se ela fosse à única responsável para salvar o lar, muitas vezes leva ela próximo dos perigosos de uma relação abusiva, que ela leva muito adiante, quando o amor já acabou, quando tudo já acabou, porque a mulher acaba se valorizando pelo sacrifício que ela faz em prol da família, quanto mais ela se sacrifica mais ela acha que está fazendo bem da família ‘olha meus filhos sofri, mas eu me mantive firme, para criar vocês, para não desagregar a nossa família’, ou seja, passando uma herança de ódio, de tristeza e desalento para os filhos, numa relação onde pode se ter tudo menos o amor. Então todos esses conceitos passam pela educação e passam pela consciência de todos os cidadãos e cidadãs de que a mulher é um ser humano completo e que não precisa sozinha salvar uma relação afetiva e que só vale se manter em uma união, seja um casamento, seja um namoro, seja uma relação de união estável se houver felicidade e onde não há violência, porque onde há violência não se tem como ter uma relação feliz de forma alguma.

Ponto na Curva - Esses casos de violência doméstica atinge somente as famílias de baixa renda ou estão presentes também nas famílias com maior poder aquisitivo?
Lindinalva Rodrigues - A violência doméstica permeia em todas as classes sociais e sempre esteve. Nós temos diversos casos de violência doméstica nas classes sociais mais abastadas, tanto efetivada por pessoas de alto nível intelectual e em condições financeiras privilegiadas, como vítimas de condições financeiras abastadas e nível intelectual não privilegiado, porque o que faz uma pessoa permaneça nesta relação abusiva, muitas vez não tem a ver com sua condição econômica, tem haver com sua dependência emocional. Muitas vezes a mulher é bem-sucedida, muitas vezes tem condições de se sustentar sozinha, se sustentar sua família e ela chega em casa e apanha do marido e temos não é só um caso, temos vários casos. Por quê? Porque ela não é capaz de recomeçar sozinha sua vida, por conta de todos esses conceitos que a sociedade impõe pelo medo de recomeçar e, sobretudo pelo medo que a mulher tem da solidão, a solidão assola a vida da mulher, a solidão é um grande fantasma da vida da mulher, é como se ela não conseguisse viver sozinha e por isso acaba aceitando coisas que o homem na mesma situação que ela jamais aceitaria, porque o homem não cresce com essa sensação de menos valia, o homem não cresce com essa sensação de que ele necessariamente precisa de uma mulher para chamar de sua, precisa de uma companheira, precisa casar, muito pelo contrário, isso é algo que se colocam das meninas desde cedo, mas não dos homens, porque o mundo ainda é extremamente masculino.

Ponto na Curva - Recentemente foram implantadas as audiências de custódia em Cuiabá e a senhora já que manifestou contra. Quais os motivos pelo qual a senhora é contra as audiências de custódia nos casos de violência contra mulher?
Lindinalva Rodrigues - Sou absolutamente contra as audiências de custódia nos casos de violência doméstica, porque essas audiências de custodia ocorrem justamente no afã dos acontecimentos, ou seja, no momento em que eles acabam de acontecer, no momento em esses crimes exigem toda cautela do Estado, no momento em que essa vítima precisa de proteção estatal, no momento em que ela tem medo e no momento que se esse homem, que geralmente, via de regra não é um bandido, mas é um homem machista, preconceituoso, obsessivo e é capaz de tudo nesse momento de fúria. O homem obsessivo, preconceituoso e machista é capaz dos crimes mais bárbaros contra as mulheres nas ações de violência doméstica, portanto, sou absolutamente contra essa liberação desmedida que está sendo feita nas audiências de custodia, onde praticamente mais de 90% acusados estão sendo soltos com um mero telefonema para as vítimas. Vítimas que se dizem amedrontadas, vítimas que dizem que não entenderam o telefonema e nem o seu objetivo, vem aqui e falam nos próprios autos, falam para nós que não entenderam o motivo e nem o que se estava se tratando aquele telefonema e nós estamos muito preocupados porque se esse homem depois que for solto e acontecer o pior não adianta todos se voltarem para essas vítimas. O nosso papel sempre foi na violência doméstica tratar desses casos enquanto eles ainda são pequenos, lesões leves e ameaças para que não se tornem feminicídios, porque a morte é muito definitiva, ela não tem retorno e é muito triste para toda sociedade e para as famílias, tanto termos uma filha agredido como um filho agressor, a violência doméstica machuca a família inteira e é um problema tanto dos homens quanto das mulheres.  A audiência de custódia é um grande retrocesso na área de violência doméstica, porque voltamos para Lei 9.099, onde esses casos eram tratados como casos sem nenhuma importância. O protagonismo volta a ser completamente do agressor, a vítima deixa de ser protagonista, a vítima não é chamada para esta audiência, muitas vezes ouvida somente pelo telefone e outras vezes nem é ouvida, é ouvido um parente, um irmão, ela sequer é ouvida sobre a soltura desse agressor, contra literalmente todos os termos dessa legislação, somos contra, temos nos posicionado absolutamente contra.

Ponto na Curva - No Brasil, há estados que deixaram de aplicar as audiências de custódias nos casos de violência doméstica?
Lindinalva Rodrigues - Sim, temos o Estado do Ceará que excluiu da audiência de custódia os crimes de violência doméstica, porque o artigo 6º da Lei Maria da Penha afirma que todos os casos de violência doméstica são graves violações de direitos humanos e também em pedido alternativo temos o pedido de que se o Tribunal firmar entendimento de que é necessário a audiência de custódia para esses casos, que sejamos nós os operadores jurídicos que temos capacitação para atuar nesses casos, promotores e juízes da própria violência doméstica que façamos essas audiências e não operadores que não conhecem nada de gênero e que não atuam n área de violência doméstica como está acontecendo hoje, o que nós avaliamos como um grande retrocesso e que certamente vai deixar um rastro de sangue e de poucos benefícios as mulheres da nossa cidade.

Ponto na Curva - Quais as medidas que estão sendo tomadas para que os casos de violência doméstica fiquem fora das audiências de custódia?
Lindinalva Rodrigues – Nós aqui do Núcleo de Promotorias junto com minhas colegas Elisamara Portela e Sasenasy Daufenbach, temos empreendido uma luta contra as audiências de custódia. Oficiamos todas as autoridades locais e nacionais em busca de apoio contra esse grande retrocesso. Recebemos com grande alegria um ofício do nosso governador do Estado, Pedro Taques, dando total apoio ao nosso entendimento de que realmente a violência doméstica deve estar fora das audiências de custódia, inclusive Dr. Pedro foi além, além de nos dar apoio, ele fez de próprio punho um ofício para o presidente do Tribunal de Justiça, pedindo em nosso nome que retirasse as audiências de custódia da violência doméstica. Nós estamos então aguardando o que a Corregedoria e o que o Presidente do Tribunal de Justiça vão fazer em relação a violência doméstica quanto a audiência de custodia, acreditamos no bom senso deles, porque Mato Grosso sempre esteve na vanguarda na proteção contra as mulheres, contra a violência doméstica e temos muita esperança de que eles retirem esses crimes das audiências de custodia até porque na violência domestica nós nunca tivemos um atraso na análise desses réus presos, ou seja, esses criminosos em tese nunca ficaram muito tempo preso, sempre foram liberados imediatamente, sempre foram analisados caso por caso. Não estão aí engrossando o caldo desses supostos criminosos que estão aí presos injustamente e sem análise do Judiciário, muito pelo contrário, nós analisamos caso por caso, a defensoria analisa caso por caso e o próprio judiciário analisa caso por caso, ou seja, nós não tínhamos ali nenhum processo atrasado de réu preso que justificasse a intervenção de outro juiz, de outra área sobre o nosso trabalho para ser feito como está sendo feito nas audiências de custódia.