A questão da violência doméstica é um fenômeno complexo e multifacetado que afeta milhões de mulheres em todo o mundo, sendo alvo de diversas pesquisas que buscam identificar os fatores de risco associados ao surgimento de agressões físicas, verbais ou sexuais. Esta discussão levanta uma questão crucial: a violência doméstica pode ter origens evolutivas?
Dentre os diversos fatores que contribuem para essa realidade alarmante, um aspecto crucial que merece ser explorado é o antropocentrismo e sua influência nas dinâmicas de desigualdade de gênero e violência contra as mulheres no ambiente doméstico.
No estudo abrangente realizado com o povo Tsimané, uma comunidade indígena do departamento de Beni, Bolívia, foi analisada o uso estratégico da violência pelos homens como uma forma de aumentar seu sucesso reprodutivo. Isso levanta questões sobre a persistência de comportamentos prejudiciais ao longo da evolução, como o altruísmo, que apesar de envolver sacrifícios individuais, continua presente em várias sociedades.
De acordo com as observações feitas pelo autor Rodrigo Freitas Palma, a Antropologia teve sua origem em um contexto de colonialismo, em que os povos não ocidentais estavam subjugados às conquistas e expansões territoriais das potências europeias nos séculos anteriores. Isso reflete a abordagem das potências dominantes de "melhor conhecer para com mais eficácia dominar.
O antropocentrismo, como visão que coloca o ser humano no centro de todas as coisas, influencia profundamente nossa forma de interagir não apenas com o meio ambiente, mas também com outros seres humanos. Quando aplicamos essa visão de forma desequilibrada e hierárquica às relações de gênero, podemos observar como ela contribui para a desigualdade e a violência contra as mulheres no ambiente doméstico.
Em um contexto antropocêntrico, a tendência é enxergar o mundo e os relacionamentos de forma hierárquica, com uma posição dominante (ou superior) atribuída aos seres humanos, especialmente aos homens, em relação às mulheres e outras formas de vida. Essa hierarquia é frequentemente sustentada por noções de poder, controle e supremacia que são socialmente construídas ao longo do tempo.
Dentro do ambiente doméstico, essa visão hierárquica pode se manifestar de várias maneiras, desde a simples atribuição de papéis tradicionais de gênero até formas mais extremas de abuso e violência. A desigualdade de gênero, muitas vezes enraizada em normas culturais e sociais, pode ser perpetuada e até mesmo legitimada por essa visão antropocêntrica que valoriza mais os interesses, desejos e necessidades dos homens em detrimento das mulheres.
Quando aplicado à dinâmica de gênero, o antropocentrismo muitas vezes perpetua uma estrutura de poder desigual, na qual os homens são posicionados como superiores e detentores de autoridade sobre as mulheres. Isso pode levar a situações em que a voz, a autonomia e os direitos das mulheres são sistematicamente desconsiderados, resultando em formas de violência psicológica, emocional, física e sexual, onde o controle sobre a mulher é justificado pela suposta superioridade masculina.
Além disso, o antropocentrismo também pode afetar a percepção das mulheres como "propriedade" ou "objetos" dos homens, contribuindo para uma cultura de objetificação e desvalorização das mulheres como indivíduos autônomos e dignos de respeito.
Portanto, ao refletir sobre a relação entre antropocentrismo e violência doméstica contra as mulheres, é crucial questionar e desafiar essa visão hierárquica e desigual que coloca o ser humano no centro de tudo, mas apenas alguns seres humanos em detrimento de outros. Uma abordagem mais equitativa e inclusiva, que reconheça e respeite a igualdade de direitos, autonomia e dignidade de todas as pessoas, é essencial para vencer a desigualdade de gênero e construir relações familiares e sociais mais saudáveis e justas.
Referências:
PALMAS, Rodrigo Freitas. Antropologia Jurídica. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. E-book.
https://www.scielo.br/j/mana/a/tRYDbBv8ZQf9SJmpvSywtjb/
Jamilson Haddad Campos é juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Mato Grosso.