Lucielly Melo
Há quatro meses à frente da 2ª Vara Cível da Comarca de Cuiabá, especializada em Direito Agrário, o juiz Carlos Roberto Barros de Campos é o entrevistado do Ponto na Curva desta semana e fala sobre os conflitos agrários em todo o Estado.
A Vara tem competência para processar e julgar as ações que envolvam conflitos fundiários/agrários coletivos em Mato Grosso, bem como ações que são conexas e processos que envolvam conflitos possessórios urbanos e rurais de Cuiabá.
Atualmente, a demanda é de 776 autos físicos e 141 eletrônicos, entretanto, quase em sua totalidade possuem muitos volumes, alguns alcançando dezenas de cadernos processuais. O Polo de Juína, que engloba os municípios de Castanheira, Juara, Aripuanã, Brasnorte, Porto dos Gaúchos, Novo Horizonte do Norte, Tabaporã, Colniza, Cotriguaçu e Juruena, é o que mais possui conflitos no campo.
De acordo com o magistrado, as invasões às vezes ocorrem por questões de subsistência, outras podem ter interesses distintos e envolverem várias situações.
Ele falou, ainda, dos motivos das invasões, da Lei nº 13.465/2017, que trata da regularização fundiária urbana e rural do país, e que está contribuindo para a edificação de uma nova realidade e outros assuntos.
Veja abaixo a íntegra da entrevista:
Ponto na Curva: Inicialmente gostaria que fizesse uma explanação sobre a atuação da 2ª Vara Cível, que é especializada em Direito Agrário?
Carlos Roberto: Cabe a esta Vara, processar e julgar as ações que envolvam conflitos fundiários/agrários coletivos em todo o Estado de Mato Grosso, nos termos da Resolução 006/2014 do Tribunal Pleno de nosso egrégio Sodalício. O que é de conflito coletivo, por exemplo, em Juína, Alta Floresta, Poconé, São Felix do Araguaia, Itiquira, etc., vem para cá, porque o magistrado de lá declina a competência. Independentemente do local do litígio, ela tem jurisdição em todo o Estado. Nos termos do art. 126 da Constituição da República: para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça proporá a criação de varas especializadas, com competência exclusiva para questões agrárias. O parágrafo único dita ainda, que: Sempre que necessário à eficiente prestação jurisdicional, o juiz far-se-á presente no local do litígio. Além disso, dispõe o art. 481 do Código de Processo Civil que: O juiz, de ofício ou a requerimento da parte, pode, em qualquer fase do processo, inspecionar pessoas ou coisas, a fim de esclarecer fato de interesse à decisão da causa. A competência da Vara se estende ainda às ações que lhe são conexas, assim como aos processos que envolvam conflitos possessórios urbanos e rurais da Comarca de Cuiabá. Quando a Vara deve ser acionada? Quando tiver os requisitos: movimentos sociais ou grupos pleiteando a posse; ocupação para fins de distribuição de terras de forma pacífica ou violenta; interesse social ou tensão social; defesa dos direitos humanos, etc.
Ponto na Curva: Hoje, quantos processos tramitam na 2ª Vara Cível, especializada em Direito Agrário e qual região do Estado com maior demanda de ações.
Carlos Roberto: Atualmente a demanda é de 776 autos físicos e 141 eletrônicos, dos quais, quase em sua totalidade possuem muitos volumes, alguns alcançando dezenas de cadernos processuais. A distribuição dos casos: a região de Juína é a que tem mais conflitos agrários, que denominamos como Polo e engloba ainda os Municípios de Castanheira, Juara, Aripuanã, Brasnorte, Porto dos Gaúchos, Novo Horizonte do Norte, Tabaporã, Colniza, Cotriguaçu e Juruena. No último levantamento tínhamos cerca de 1,500 milhão hectares de terra envolvidos nos conflitos em todo o Estado, 80% de terras privadas e 20% públicas.
Ponto na Curva: Na maioria dos processos os conflitos estão relacionados à quê?
Carlos Roberto: Estou aqui há apenas quatro meses, pelo pouco tempo, pude notar que na maioria das vezes as invasões ocorrem em imóveis rurais com grandes dimensões, alguns com demandas judiciais, entre elas, reivindicatórias da União, discussões sobre deslocamento e sobreposição de títulos, áreas de empresas em situação pré-falimentar com processo de recuperação judicial em tramitação, terras ditas devolutas, e até áreas entregues em pagamento ao Estado/União nos acordos de delações premiadas. Então, algumas vezes, existem interesses diversos (ex. extração de madeira), que não estão ligados à questão da reforma agrária ou à distribuição de terras.
Tem movimentos sociais sérios, mas existem, em alguns processos coletivos, aqueles que constituem associações e invadem uma área que é produtiva e até, economicamente, traz prejuízo para o próprio Estado
Voltando ao questionamento anterior, em grande parte das ações são áreas em que os fazendeiros, os proprietários rurais - primeiro tem o domínio e segundo, tem a posse, a maioria tem a posse e o domínio. Às vezes até acontece crimes ambientais nessas invasões, uma vez que a legislação dispõe que toda área rural deve ter uma APP (Área de Preservação Permanente). Eles entram na APP e retiram madeira de lei. Por exemplo, teve um caso, em que uma grande empresa estava fazendo manejo para futura exploração florestal com alta tecnologia, gastando milhões. Ocorreu a invasão na área com retirada de madeiras nobres e o proprietário se desiludiu e foi embora.
O Brasil é um “continente” e isso precisa ser levado em consideração, as bases cadastrais do INCRA e do INTERMAT, em função das dimensões continentais, tanto do País quanto do Estado de Mato Grosso, ainda, são deficitárias. Entretanto, a Lei n° 13.465/2017, que trata da regularização fundiária urbana e rural, como se vê é uma norma recente e está contribuindo para a solução da questão fundiária. Ademais, o georreferenciamento consubstancia importante ferramenta técnica de modo a gerar segurança na definição dos limites dos imóveis e suas confrontações.
Ponto na Curva: A maioria desses processos, essas invasões, se dão por questão de subsistência ou econômicas?
Carlos Roberto: Às vezes é por subsistência, as vezes não. Outras podem ter interesses distintos e envolverem várias situações. Por isso, que digo que a questão é complexa, que envolve vários setores da sociedade. O conflito não podemos esquecer é localizado, envolve uma situação local. As vezes não conseguimos enxergar quem está por trás daquilo. Esses dias determinei a renovação de uma reintegração de posse e a parte autora, através de uma petição, me trouxe uma fotografia de um cartaz que dizia assim: "Invadam, temos 850 lotes para serem invadidos. Mas, invadam rápido". Isto ocorreu após a renovação da liminar; isso é fomento, direcionamento e exploração dos menos favorecidos. Tem movimentos sociais sérios, mas existem, em alguns processos coletivos, aqueles que constituem associações e invadem uma área que é produtiva e até, economicamente, traz prejuízo para o próprio Estado.
Ponto na Curva: Mato Grosso é um estado enorme no que tange a dimensão territorial e dispõe de muita terra, o que se percebe em muitos casos é a falta de uma gestão fundiária. Coaduna com esse entendimento?
Carlos Roberto: Coaduno em parte. Todavia não podemos deixar de ter em consideração que o Estado de Mato Grosso hodiernamente é o maior produtor nacional de grãos exsurgindo como locomotiva nacional do agronegócio. Por conseguinte suas terras são muito valorizadas, cobiçadas e, por vezes, o interesse local está por traz do conflito.
Ademais, não se trata de um problema estadual e sim nacional. A legislação é editada correndo atrás dos fatos, das situações conflitantes. Por sua vez, o executivo padece com a ausência de planejamento e de gestão de longo prazo no trato das questões fundiárias, consubstanciando um certo “absenteísmo” histórico a nível nacional.
É fácil criticar, mas a situação é complexa. Estamos diante de um país continental que tem um problema histórico de repartição de renda. Qualquer nação do mundo que estivesse na nossa situação estaria enfrentando os mesmos problemas.
Ponto na Curva: Cabe ao Judiciário decidir as demandas que recebe, mas em muitos casos não se consegue cumprir a decisão, já que a maioria ou a totalidade precisa passar pelo Comitê de Conflitos Agrário do Governo do Estado. Como o senhor vê isso?
Carlos Roberto: O Comitê Estadual de Conflitos Agrários atua apenas em conflitos coletivos e sempre cumpre as decisões judiciais. Algumas vezes, quando o conflito é complexo, ele demanda um estudo/levantamento pormenorizado da situação em campo. Assim, em casos pontuais o cumprimento da reintegração de posse se estende dando a impressão de que está demorando. No entanto, a Casa Militar age com responsabilidade nas suas deliberações colegiadas. Nesse contexto, de forma alguma, interfere no cumprimento da decisão judicial. Na verdade, atua de modo a evitar o acirramento do conflito quando das desocupações, agindo em determinados eventos com a força proporcional e moderada que a situação exige, em decorrência da recalcitrância dos ocupantes em desobedecerem ao comando judicial, deixando o imóvel voluntariamente.
Ponto na Curva: Dada a decisão judicial, como acontece o cumprimento? É exclusivamente pelo Comitê ou se cumpre por meio de oficial de Justiça?
Carlos Roberto: O mandado com a decisão vai para o Comitê e também é enviado, através de uma carta precatória, para a Comarca, onde o oficial de justiça atua; mas ele aguarda o Comitê fazer o levantamento da área, da situação e cumprem de forma conjunta.
Ponto na Curva: Há registros de casos de dificuldade em cumprir a decisão devido a situação financeira do Estado, que não tem dinheiro para pagar a diária de policiais militares, por exemplo...
Carlos Roberto: Entendo que não cabe ao Poder Judiciário entrar nesse mérito, mas o que vejo é muita boa vontade do Comitê. Se questões pontuais financeiras ocorrem, não podemos deixar de entender que o Estado passa por uma crise financeira, inclusive foi decretada calamidade. Estamos passando por situações que há um contingenciamento em todas as áreas, o que pode estar ocorrendo aqui.
Toda situação de conflito é preocupante. É natural que Mato Grosso, entre aspas, apareça em primeiro lugar no ranking de conflitos no campo; pois é o Estado com maior dimensão territorial da Região Centro-Oeste e com uma considerável população rural
Ponto na Curva: Dados da Pastoral da Terra, recentes, demostram que os conflitos no campo aumentaram em Mato Grosso no ano de 2018 em comparação a 2017. Em 2018, 28.598 pessoas se envolveram em conflitos com 633 famílias despejadas, 550 famílias expulsas e 1.164 famílias vítimas de pistolagem. 1.904 conflitos por terra indígena, 1.674 trabalhadores sem-terra envolvidos em conflitos, 949 assentados e 627 posseiros. Como o senhor vê esses números?
Carlos Roberto: É difícil comentar esses números. Primeiro, porque, repito, estamos tratando de um País continental, com problemas de repartição de renda histórica. Ademais, a coleta desses dados, o tratamento deles, e a forma em que é efetuada a estatística pode, sem má-fé, estar baseada em premissas subjetivas e com erros materiais e formais, entre eles a nomenclatura das situações levantadas. O que é despejada e o que é expulsa? Não se pode dizer que famílias são despejadas se elas estão sendo retiradas da área em função de uma decisão judicial. A Juíza de Direito Adriana Sant’Anna Coningham, que é titular e vinha atuando nesta Vara, apresentou um trabalho sobre o Direito Agrário em um Seminário Internacional e mostrou números de Mato Grosso. O que tenho a comentar sobre essa situação? No Estado de Mato Grosso apenas 7% dos conflitos fundiários envolvem movimentos sociais, como o MST e as Ligas Camponesas.
Ponto na Curva: Mato Grosso figura em primeiro lugar no ranking de conflitos no campo – proporcionalmente ao tamanho da população rural – entre os estados da região Centro-Oeste. Isso preocupa?
Carlos Roberto: Toda situação de conflito é preocupante. É natural que Mato Grosso, entre aspas, apareça em primeiro lugar no ranking de conflitos no campo; pois é o Estado com maior dimensão territorial da Região Centro-Oeste e com uma considerável população rural.
Por outro viés, não podemos olvidar que o Judiciário é um Poder inerte, apenas age quando provocado compondo as lides.
Quando se demanda, o Judiciário sempre examina uma liminar, na grande maioria das vezes após uma audiência de justificação; executamos inspeções judiciais; determinamos perícias; entre outras diligências. Então, atuamos de modo a tentar compor o conflito, muitas das vezes fazemos audiências de conciliação. Por vezes conseguimos acordos, de modo que os invasores/ocupantes parcelam a compra do imóvel rural e os proprietários/possuidores aceitam vender parte ou toda a área para eles. Nesse contexto complexo creio que o Poder Judiciário, na medida do possível, está cumprindo seu desiderato constitucional.