facebook instagram
Cuiabá, 26 de Abril de 2024
logo
26 de Abril de 2024

Cível Sexta-feira, 24 de Março de 2017, 16:44 - A | A

24 de Março de 2017, 16h:44 - A | A

Cível / 33 MIL HECTARES

TJ julga ação de R$ 350 milhões envolvendo ex-cônsul em MT

Empresa alega validade de contrato; juiz diz que procuração de posse de terras é nula

Lucas Rodrigues/MidiaNews



A 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso poderá julgar, ainda neste mês, um recurso sobre a posse de uma área rural de 33 mil hectares na região de Sorriso, com valor estimado de R$ 350 milhões.

O recurso foi interposto pela Premium Negócios Imobiliários Ltda., que tenta reverter decisão do juiz Jacob Sauer, de Nova Ubiratã, que julgou extintas as ações em que a empresa discutia a propriedade das terras.

O caso é referente a uma disputa envolvendo os agricultores proprietários das terras vendidas pela herdeira do imigrante alemão Emil Sackmann, que acusam a empresa Premium de uma manobra ilegal feita pelo ex-cônsul da Alemanha em Mato Grosso, Eike Kramm, com eventual participação de sua filha, a atual consulesa Tania Kramm.

A extinção da ação ocorreu após o juiz Jacob Sauer afirmar que há "fundadas suspeitas" quanto a validade de um documento autenticado por Tania Kramm. O juiz também registrou que a procuração que concedia a posse das terras ao pai da consulesa era nula (leia mais sobre a decisão abaixo).

Ouvida pela reportagem, a consulesa preferiu não falar sobre o caso (veja abaixo).

A área da disputa, conhecida como “Gleba Rio Ferro”, pertencia a Emil Sackmann e sua esposa Lucie Helene Sackmann, ambos alemães radicados no Brasil.

No início da década de 80, o casal decidiu retornar à Alemanha e, para tanto, fez uma procuração pública outorgando amplos poderes a Ellen Lucie, sua única filha, para que pudesse gerir, administrar e até vender as áreas que compunham a gleba.

Em 1989, a filha do casal vendeu as terras à Geraldo Antonio Mendes da Silva por compromisso particular de compra e venda.

Em 1997, a filha do casal Sackmann, Ellen Lucie, decidiu retornar para a Alemanha para cuidar de seus pais e substabeleceu os poderes da procuração pública outorgada por seu pai ao empresário Geraldo Antonio Mendes da Silva, em que dava o direito de ele revender as terras para terceiros.

A área então foi vendida por Geraldo Silva a vários agricultores, desde os anos 90.

Em 2012, após tomar conhecimento do falecimento do patriarca, que teria ocorrido quatorze anos antes, o ex-consul alemão em Mato Grosso, Eike Kramm, viajou para a Alemanha e, segundo ele, recebeu em cessão os direitos de herança da viúva Lucie Helene e da filha Ellen Lucie.

Tais direitos foram posteriormente vendidos para a empresa Premium Negócios Imobiliários por valor 10 vezes inferior ao valor das terras - sendo que a empresa foi criada poucos meses após a viagem de Kramm para a Alemanha.

A Premium, então, reclamou que mesmo após o falecimento do patriarca, Geraldo Silva continuou a vender as terras em nome da família Sackmann.

Desta forma, a empresa Premium pediu que todas as áreas de terra da gleba que foram vendidas por Geraldo Silva fossem declaradas nulas.

Direito de herança e procuração em português

Porém, a versão apresentada pelos agricultores que compraram as terras de Geraldo Silva e pela própria família Sackmann é outra.

A defesa dos agricultures alegou que o ex-cônsul Eike Framm era uma pessoa próxima ao fazendeiro Geraldo Silva e que chegou a advogar e até ajudar nas vendas das terras da gleba aos agricultores.

De acordo com os compradores, após descobrir que Emil Sackmann tinha morrido, Eike Framm viajou até a Alemanha à procura da filha do imigrante, se apresentando como representante de Geraldo Silva. Segundo a defesa, a viagem teve o intuito de dar um “verdadeiro golpe” na herdeira.

Conforme os advogados dos agricultores, Eike Kramm se reuniu com Ellen Lucie e se apresentou como pessoa de confiança de Geraldo Silva.

Na ocasião, ele apresentou uma procuração particular – escrita apenas no idioma português – e teria dito que, em razão da morte do pai dela, Ellen Lucie deveria assinar o documento para confirmar a negociação das terras por parte de Geraldo Silva.

A defesa disse que como a herdeira não tinha domínio sobre o idioma, acreditou nas palavras de Eike Kramm e assinou a procuração particular.

Porém, tal documento previa que ela passaria os direitos da herança de seu pai a Kramm.

“Conclui-se que Ellen Lucie foi induzida a erro por Eike Kramm, que dolosamente fez constar em dita procuração supostos poderes para ‘ceder e transferir seus direitos hereditários sobre terras na Gleba Rio Ferro’”, diz a defesa dos agricultores na ação.

Além disso, conforme a defesa, Eike Kramm teria falsificado a assinatura da viúva Lucie Helena Sackmann, uma vez que ela sofria de demência avançada e estava internada desde 2008.

“A prova desse fato se extrai dos termos (i) da declaração prestada por Ellen Lucie em que afirma que sua mãe Lucie Helene Sackmann sofre de demência avançada e vive no lar de idosos ‘Parkresidenz Helmine Held’ desde 28 de outubro de 2008 em Grünwald, Alemanha, conforme item (xiv) da Declaração de doc. 6; (ii) do atestado médico de saúde firmado pela Dra. Gesine Jungjohann confirmando a demência degenerativa de Lucie Helene Sackmann (doc. 17); e (iii) do documento fornecido pela clínica de repouso ‘Parkresidenz Helmine Held’ atestando a moradia permanente de Lucie Helene Sackmann, desde 28.10.2008, em tratamento estacionário nível 3 (nível mais alto) (doc. 18)”.

Após descobrir que teria sido enganada, de acordo com a defesa, a herdeira fez uma declaração em que afirmou ter assinado a procuração particular para confirmar a venda das terras por Geraldo Silva a terceiros, e não para passar os direitos da herança a Eike Kramm.

Autenticação da consulesa

Na contestação, a defesa ainda relatou que Eike Kramm, após conseguir a assinatura da herdeira, apresentou as procurações para que sua própria filha Tania Kramm da Costa autenticasse as assinaturas, em 2012. Na ocasião, Tania havia sido recém empossada consulesa da Alemanha em Cuiabá.

A defesa contou que, nas procurações, Eike Kramm colocou como seu endereço o mesmo endereço do Consulado da Alemanha em Cuiabá, local em que Tania Kramm atuava.

Outra suspeita lançada pela defesa é o fato de Tania Kramm não só ter reconhecido a autenticidade da assinatura da Ellen Lucie e da viúva Lucie Helene, como ter atestado que as duas haviam assinado os documentos “na sua presença na Comarca de Cuiabá, MT”.

“Conclui-se, portanto, que Tania Kramm da Costa, aparentemente filha de Eike Kramm, aproveitando-se de sua condição de Cônsul Honorária da Alemanha em Cuiabá, certificou que as assinaturas teriam sido subscritas ‘na sua presença’ na cidade de Cuiabá-MT e por reconhecimento de autenticidade ‘por conhecimento pessoal’ quando, na verdade, Ellen Lucie e Lucie Helene Sackmann estavam na Alemanha e, ainda mais grave, quando Lucie Helene Sackmann já era pessoa totalmente incapaz por demência avançada, internada há mais de 4 anos na clínica de repouso ‘Parkresidenz Helmine Held’ na cidade de Grünwald, Alemanha (docs. 17 e 18)”, diz a defesa dos agricultores.

Três meses após a autenticação das assinaturas, de acordo com a defesa, foi criada a empresa Premium Negócios Imobiliários, cujo sócio Leonardo Augusto Passos da Costa, que seria esposo de Tania Kramm.

Diz a defesa dos agricultores: “Eis que apresenta sobrenome comum e reside exatamente no mesmo local em que funciona o Consulado da Alemanha em Cuiabá – MT, conforme se verifica no documento juntado às fls. 43 (Av. França, 199, Bairro Santa Rosa), que é também o mesmo endereço de Eike Kramm”.

Um mês após a empresa ser criada, em novembro de 2012, Eike Kramm passou os direitos das procurações particulares de cessão de herança para a Premium que, em tese, pertenceria ao seu genro.

“Por fim, para efetivar o golpe engendrado por Eike Kramm, a empresa Requerente [Premium] ajuizou a presente ação, alegando que (i) teria adquirido todos os direitos sucessórios e de meação dos bens deixados por Emil Sackmann e (ii) o Requerido Geraldo Antônio Mendes da Silva, ciente do falecimento de Emil Sackmann, teria feito uso de mandato extinto, razão pela qual seriam nulos os atos de alienação das terras do Rio Ferro registrados em favor dos Requeridos”.

Desta forma, a defesa dos agricultores pediu que as ações fossem extintas porque as procurações particulares não poderiam transmitir direitos sobre as terras para Eike Framm.

Juiz vê suspeitas

A primeira decisão sobre o caso foi dada em agosto de 2015 pelo juiz Jacob Sauer, de Nova Ubiratã.

Na sentença, o magistrado registrou que Tania Kramm, por “dever ético”, em tese não poderia ter autenticado procurações de interesse do seu pai, “pois há flagrante conflito entre o interesse público e o particular”.

Jacob Sauer também apontou graves inconsistências nas procurações assinadas por Lucie Helene e Ellen Lucie Sackmann para Eike Kramm, “que permitem fundadas suspeitas acerca da autenticidade desses documentos”.

Assim como a defesa, o juiz também citou como “relevante” o fato de um dos sócios da Premium Negócios Imobiliários Ltda. ser o possível marido da consulesa Tânia Kramm.

“Ou seja, soa por demais estranho, para o pouco dizer, que o Sr. Eike Kramm tenha recebido uma procuração outorgada por pessoas residentes na Alemanha, por instrumento particular com autenticidade confirmada por uma parente muito próxima – Tânia Kramm da Costa – e meses após tenha sido constituída a empresa requerente, figurando dentre seus sócios outro parente próximo e também residente no mesmo endereço – Leonardo Augusto Passos da Costa”.

Na decisão, Jacob Sauer também explicou que a cessão de direitos concedidas por Lucie Helene e Ellen Lucie Sackmann a Eike Kramm, por ser negócio que transmite propriedade de imóvel, só teria validade se fosse firmada por meio de procuração pública.

Porém, como o negócio foi firmado por meio de procuração particular, o juiz não só negou o pedido da Premium, como reconheceu a nulidade do ato de cessão dos direitos da terra da família Sackmann a Eike Kramm.

“Outra solução não resta senão o reconhecimento da nulidade da cessão de direitos de meação e herança por parte de Lucie Helene Sackmann e Ellen Lucie Sackmann à pessoa de Eike Kramm, nos termos do art. 166, IV, do Código Civil. Amparando-se a empresa Premium Negócios Imobiliários Ltda. no substabelecimento dos poderes pretensamente outorgados a Eike Kramm para ajuizamento da ação, resulta do reconhecimento da mencionada nulidade sua ilegitimidade para a causa”, decidiu.

Recurso indefinido

A Premium, todavia, recorreu da sentença na 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. A relatora do caso, desembargadora Cleuci Terezinha, negou o recurso, em seu voto, e destacou a existência de “contornos extremamente nebulosos” nas ações.

“As inconsistências que permeiam a cessão de direitos de meação hereditários utilizada para a propositura da presente demanda despertam suspeitas quanto a sua autenticidade e validade jurídica, conforme bem salientado pelo magistrado a quo”, disse ela.

Porém, no dia 15 de março, o desembargador Dirceu dos Santos divergiu da relatora e votou por atender o recurso da Premium para que sejam produzidas provas no intuito de esclarecer as dúvidas das ações. O desembargador Carlos Alberto Alves da Rocha também votou nesse sentido.

"Não pode o magistrado apreciar de forma antecipada a matéria de fundo, principalmente quando o mérito depende da produção de provas ainda não oportunizadas às partes", declarou Dirceu em seu voto.

Como o resultado não foi unânime, a câmara convocou os desembargadores Rubens de Oliveira e Guiomar Borges para votarem, o que deve ocorrer até o final deste mês.

Na hipótese de a sentença do juiz Jacob Sauer ser anulada, a ação voltaria a tramitar em Nova Ubiratã para que fossem produzidas provas pela Premium e, a partir daí, julgasse o mérito do pedido da empresa.

Caso contrário, a sentença será mantida e a cessão de direitos sobre as terras que teria sido firmada pelas herdeiras Sackmann a Eike Kramm por procuração particular, permanecerá sem validade.

Outro lado

Procurada pela reportagem, a consulesa Tania Kramm não quis comentar o caso, do qual não estava a par.

Ela indicou o advogado Saulo Castrillon, que faz a defesa da Premium. Durante toda esta quinta-feira (23) a reportagem tentou falar com o advogado, mas as ligações feitas ao seu celular caíram na caixa postal.

A sede da empresa Premium Negócios Imobiliários Ltda. também não foi localizada, assim como seus sócios.