facebook instagram
Cuiabá, 26 de Abril de 2024
logo
26 de Abril de 2024

Entrevista da Semana Quinta-feira, 08 de Março de 2018, 09:27 - A | A

08 de Março de 2018, 09h:27 - A | A

Entrevista da Semana / LUTA PELA IGUALDADE

Desembargadora fala de preconceito ao ascender para o TJ, avanços e pontos que precisam de debate no que tange a mulher

Para a magistrada do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), Maria Helena Póvoas, as mulheres devem continuar brigando para conquistar novos avanços

Antonielle Costa e Lucielly Melo



“Ouvi dois colegas conversando ‘eu não sei o quê que a mulher está fazendo na magistratura. Lugar mesmo da mulher seria bem mais aproveitado no fogão ou na educação dos filhos no lar’. E como eu não me curvo a absolutamente nada e principalmente não costumo ficar quieta quando ouço algum desaforo, fui logo dizendo ‘não se incomode com isso, vou ficar aqui só 27 anos e logo estou saindo’”.

As palavras são da desembargadora Maria Helena Póvoas Gargaglione, que lembrou do preconceito que sofreu quando iniciou sua carreira no Tribunal de Justiça de Mato Grosso.

Em especial ao Dia Internacional da Mulher, a magistrada, que já atuou na presidência da Ordem dos Advogados do Brasil em Mato Grosso (OBA-MT) e do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-MT), conversou com o Ponto na Curva e discutiu os avanços já conquistados e outras questões que ainda precisam progredir.

Confira abaixo a entrevista na íntegra.

Ponto na Curva: Para a senhora, que possui uma trajetória na área jurídica, qual a importância da mulher no Poder Judiciário?

Maria Helena: Eu fui criada em um lar em que meu pai sempre foi político e convivi muito com essa vida política, isso me atraía profundamente. Quando estava na adolescência comecei no centro acadêmico da faculdade, onde aprofundei ainda mais meu gosto pela discussão política, a preocupação com os rumos da nação, enfim, uma série de assuntos do nosso cotidiano. Quando terminei a faculdade, comecei minha vida profissional como advogada, onde fiquei por 28 anos. Dentro desse cenário me aparece uma situação desafiadora que era a eleição para presidência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MT). Naquela época tinha mais ou menos uns 2 mil inscritos na Ordem, desse número a grande maioria era de homem. Aquilo foi uma situação desafiadora e apaixonante. Consegui mexer com a classe e congregar todas esses profissionais em torno, não só do tema da advocacia, mas mostrar que a bandeira da Ordem dos Advogados ia muito além da advocacia. Depois tive outro desafio ainda maior, que foi o segundo mandato, momento em que a lei já havia mudado. Fiquei cinco anos à frente da instituição, foi uma experiência única na minha vida, uma experiência brilhante, onde vivi situações que talvez poucas pessoas viveram. Posteriormente, surgiu um outro desafio, já que o que mais gosto na vida são desafios. Entrei para a lista sêxtupla e para a minha surpresa, na primeira rodada de votação, só eu atingi o número suficiente para compor a lista. Me surpreendi também quando fiquei na lista tríplice elaborada pelo Tribunal de Justiça, porque tivemos grandes embates quando estive na OAB-MT no Tribunal, mas eram embates respeitosos. Não esperava que fosse tão recepcionada pelo TJ e passasse a integrar a lista tríplice. Ainda fui a escolhida pelo governador Blairo Maggi e confesso que jamais fui até ele para conversar sobre nomeação do quinto constitucional. Me lembro, recordo muito, pois eu tinha uma convivência partidária, mas que guardava um certo distanciamento, não era uma convivência que justificasse uma indicação tão gloriosa como essa. A única coisa que disse à ele, foi para que fizesse sua escolha, que escolhesse a pessoa que lhe inspirasse credibilidade e para minha surpresa a escolha dele recaiu na minha pessoa, o que me deixou extremamente honrada. Fui para o Tribunal de Justiça em 2005 e chegando lá, eu só encontrei a desembargadora Shelma Lombardi de Kato, que tinha sido professora de faculdade, e que depois de dois anos se aposentou, quando acabei ficando sozinha, assim como fiquei na OAB, quando em um dos meus mandatos, era só eu de mulher no país inteiro. E com a saída da desembargadora, trabalhei duro para que as mulheres tivessem acesso a essa corte de justiça, pois conheço a dificuldade que é a magistratura de carreira, conheço o quanto essas mulheres passaram por períodos de dificuldades e até mesmo de discriminação. Na história de Mato Grosso e na história do TJ, as mulheres começaram a serem aprovadas em concurso público de um determinado ano para frente, pois coincidentemente só homens eram aprovados. Era uma coisa muito curiosa. Logo que cheguei no TJ, ouvi dois colegas conversando ‘eu não sei o quê que a mulher está fazendo na magistratura. Lugar mesmo da mulher seria bem mais aproveitado no fogão ou na educação dos filhos no lar’. E como eu não me curvo a absolutamente nada, e principalmente não costumo ficar quieta quando ouço algum desaforo, fui logo dizendo ‘não se incomode com isso, vou ficar aqui só 27 anos e logo estou saindo’.

Acho que a Lei Maria da Penha foi realmente um avanço, mas ela precisa estar casada com o Estado, o legislador, aparato policial e o aparato do Judiciário

Ponto na Curva: A senhora considera a quantidade de magistradas no Pleno do TJMT significativo?

Maria Helena: Hoje, são 10 magistradas, um número bem expressivo e tenho a honra e satisfação de bater no peito de dizer que briguei por cada uma delas, para que elas acendessem ao topo da carreira e com isso demonstrar que a mulher tem uma grande aptidão para magistratura, que tem uma sensibilidade ímpar. Elas tinham dificuldade de caminhar na sua carreira, eram apenas e tão somente mão de obra, essa é a grande verdade, porque quando era pra subir ao estrelato, só eram os homens.

Ponto na Curva: A senhora acredita que esse número de mulheres gera benefícios para o Judiciário, que a sensibilidade traz um certo olhar diferente para o processo?

Maria Helena: Acho que está provado que nós mulheres temos, em determinados setores, um olhar diferenciado de determinadas situações dos homens. Eles veem aquela situação de uma forma e a mulher de outra. Isso nada tem a ver com o preparo técnico, quanto a isso eu nem discuto, pois até mesmo quando fui presidir a ordem eu nem me preocupei em instalar a tal OAB mulher, já que pra mim eram todos profissionais e ponto final. A partir daquele momento eu enxergava o número da inscrição, se usava calça ou saia não tinha menor importância. A mesma coisa é do TJ. A questão técnica não se discute, a questão de preparo, das mulheres estarem em pé de igualdade com os homens não se discute. Agora, o olhar crítico, o olhar de sensibilidade, as várias facetas de um determinado caso, as mulheres tem uma visão mais delicada e mais curiosa de enxergar determinadas situações que às vezes podem passar desapercebidas pelos homens e isso não é crítica aos homens, muito pelo contrário. Já dizem os entendidos que nós olhamos para situações do dia a dia. Isso enriqueceu o Tribunal, as mulheres trazem sua contribuição, brigando cada dia mais para que nós pudéssemos tratar a questão da violência doméstica, a questão de adoção, são coisas muito próximas da nossa, que nos rondam no dia a dia. Para os homens isso pode até se tormentoso, mas garanto que não é mais tormentoso do que para nós.

Maria Helena Póvoas 2.jpg

 Desembargadora Maria Helena Póvoas Gargaglione

Ponto na Curva: Houveram vários avanços para as mulheres, como a independência e o empoderamento no trabalho e na família, mas há outras coisas que nos entristecem como mulher, que é a violência.

Maria Helena: E está crescendo, parece-me que a situação não está encontrando resistência. Observo que parece que isso precisa de vários vetores para que essa luta ganhe musculatura. Uma delas é a estrutura estatal. O Estado deveria ter casas que albergassem essas mulheres porque a grande maioria fica dentro de casa pois não tem pra onde ir com os filhos. Elas se submetem a serem espancadas, diariamente, por conta de um teto e um prato de comida para elas e para os filhos. Um dos vetores seria que o Estado se equipasse de casas que possam abrigar essas mulheres. Outra questão que tenho desde menina, é mostrar para essas crianças que elas têm a mesma condição dos homens, não permitir o abuso, não permitir o avanço nem a titulo de brincadeira. Estabelecer um limite, pois o limite tem que ser estabelecido em tudo. Essas crianças às vezes não recebem orientação em casa do limite e quando não ocorre a orientação, elas acham que é normal. Isso que estou falando são as mulhers de classe baixa. Se for a fundo nessa história, vai descobrir um número que empate ou quiçá maior que esteja nas classes alta e média, que são os casos que não vem à tona. A classe baixa, um dia não aguenta mais, aparece alguém que tenha caridade e oferece a ela uma estrutura. Mas a classe alta fica envergonhada, então se submete aquela situação e os abusos continuam repetitivamente, e infelizmente essa situação vem acontecendo. Precisamos não esmorecer e continuar a briga que um dia nós vamos ter avanço nessa questão.

Ponto na Curva: Não podemos negar que a Lei Maria da Penha é um grande avanço, mas a gente percebe que a pena é baixa. A senhora acha que deve ter alguma mudança na legislação?

Maria Helena: O cidadão parece que já tem a índole de fazer aquilo, ele está predestinado a executar o crime, porque ele não aceita o não, ele não aceita que a mulher vai para o mercado de trabalho, a bebida, que é uma coisa que influencia muito, eu acredito que se nós tivéssemos essa conjunção de fatores, endurecimento da lei, estruturas do Estado e das delegacias da mulher. Acho que a Lei Maria da Penha foi realmente um avanço, mas ela precisa estar casada com o Estado, o legislador, aparato policial e o aparato do Judiciário. E nesse particular, as mulheres tem feito muita diferença no Judiciário. Acredito que nós só tenhamos a ganhar e continuar brigando para que esses números se invertam.