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Coluna Semanal Quinta-feira, 16 de Maio de 2019, 10:07 - A | A

16 de Maio de 2019, 10h:07 - A | A

Coluna Semanal /

A legitimidade constitucional para a revogação da prisão em flagrante de parlamentares pela Casa Legislativa (Estadual ou Distrital)

O vereador não goza da incoercibilidade pessoal relativa (freedom from arrest), embora seja detentor da imunidade material (freedom of speach) quanto às suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do respectivo município



Em outubro último, a Constituição da República completou trinta anos. O número é expressivo! Sigamos. Dentro da organização dos poderes, a Lei Maior determina que o Poder Legislativo Nacional seja exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (art. 44). A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo (Deputados Federais), eleitos pelo sistema proporcional em cada estado-membro, em cada Território e no Distrito Federal (art. 45). O Senado Federal compõe-se de representantes dos estados-membros e do Distrito Federal (Senadores), eleitos segundo o princípio majoritário (art. 46).

A partir da Proclamação da República (15-11-1889), o povo brasileiro escolhe a Forma Federativa de Estado, fisiologia política nascida com a Constituição norte-americana de 1787, caracterizada pela união de coletividades públicas dotadas de autonomia político-constitucional, na fala de José Afonso da Silva, em obra que o consagrou nacionalmente (Curso…, 32.ª ed., p. 99). Com exceção da Constituição de 1967, provida de um federalismo nominal, a federação manteve-se presente, culminando no estabelecimento do Estado Federal em nível de cláusula pétrea, compondo-se o núcleo duro da Constituição da República de 1988, de natureza intangível pelo constituinte reformador (cfr. art. 60, §4º, I).

Ao contrário do modelo clássico estadunidense, a doutrina preconiza que o retrato brasileiro de federação está estruturado em três níveis de emissão de poder, a União, os estados-membros (e o DF) e os municípios. Ressalvada a posição científica dos juristas mineiros José Afonso da Silva e Raul Machado Horta, estes últimos teriam natureza de ente federado, “entidade de terceiro grau, integrante e necessária ao nosso sistema federativo”, como fala Hely Lopes Meirelles (Direito municipal..., 16.ª ed., p. 39). Igualmente, três esferas de Legislativo, comportando os parlamentares federais, os estaduais (e distritais) e os vereadores. Idêntico arquétipo do Executivo. Diferencia-se o Judiciário, na medida em que a Constituição da República é silente a respeito da existência de órgão judicante municipal.

Logo no início, ao estabelecer os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, a Lei Fundamental consagra o princípio da separação dos poderes. Está escrito no art. 2º que são Poderes da União (ou órgãos da União), independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. No texto constitucional podemos encontrar dispositivos colidentes, em tese, com essa ideia de separação. Tem lugar aqui a sofisticação da Teoria da Tripartição do Poder do Estado, ou das funções, idealizada por Montesquieu (“O Espírito das Leis”), quando prevê um sistema de controle entre poderes, ou de freios e contrapesos (ou, na doutrina norte-americana, “checks and balances”). Na perspectiva temos, por exemplo, o art. 53 da Constituição da República, pelo que se percebe que o Poder Judiciário estaria “submisso” ao Poder Legislativo, em razão da imunidade formal (ou, de um modo geral, imunidade processual), especificamente a possibilidade de sustação da prisão e/ou do próprio processo criminal, se recebida a denúncia contra Senador ou Deputado Federal por crime ocorrido após a diplomação.

A imunidade parlamentar é garantia constitucional de existência e de independência do Poder Legislativo, excluindo o Congressista da incidência de algumas normas restritivas de direito. A imunidade não é nova no espectro do direito internacional, nem no direito interno. Raul Machado Horta (Imunidades Parlamentares, Revista da Faculdade de Direito/UFMG) diz que as imunidades receberam sua consagração inicial nas práticas, nos costumes e depois ingressaram em texto do Direito Constitucional inglês por meio da proclamação do freedom of speach (liberdade de palavra) e do freedom from arrest (liberdade de prisão arbitrária) que constavam do histórico Bill of Rights, de 1688. Em sinonímia científica, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Branco (Curso…, 10.ª ed., p. 929), sustentam que a imunidade parlamentar não é concebida para gerar um privilégio ao indivíduo que por acaso esteja no desempenho de mandato popular; tem por escopo, sim, assegurar o livre desempenho do mandato e prevenir ameaças ao funcionamento normal do Legislativo.

A partir da ideia da garantia de existência e de independência, e a específica consagração em texto constitucional, a doutrina cuida da tipologia “imunidade parlamentar” da seguinte forma: (i) imunidade parlamentar material (ou inviolabilidade); e a (ii) imunidade parlamentar formal (ou processual ou “incoercibilidade pessoal relativa”). A primeira está relacionada ao aspecto da tipificação de certas condutas humanas, como é caso do juízo de imputação penal, especialmente sobre a liberdade de expressão para proferir opiniões, palavras e votos, pelo que se tornariam invioláveis, de modo a não sofrerem ações de responsabilidade civil e/ou criminal; a segunda exclui o parlamentar de constrangimentos tipificados pelo ordenamento processual penal pátrio; é a situação da prisão em flagrante de crime inafiançável e da própria litispendência do processo-crime contra o Congressista (sobrestamento do processo).

O objeto da coluna é a recente decisão do STF versando sobre a imunidade parlamentar formal (ou processual), que se subdivide para fins didáticos em duas partes: (i) a possibilidade de a Casa Legislativa resolver pela revogação da prisão em flagrante de crime inafiançável (CRFB/88, art. 53, §2º); e a (ii) possibilidade de a Casa, após o oferecimento de denúncia, resolver pela sustação do processo-crime por crime ocorrido após a diplomação (CRFB/88, art. 53, §3º).

Esse preceito constitucional estabelece que os Congressistas (Deputados Federais e Senadores) não poderão ser presos desde a expedição do diploma, salvo em flagrante de crime inafiançável e, nesses casos, a prisão deve ser submetida, no prazo de vinte e quatro horas, à Casa Legislativa respectiva, Câmara Federal ou Senado Federal, que poderá revogar a custódia cautelar. Ademais, a Casa possui a prerrogativa constitucional de sustar o andamento de ação penal aberta contra o Congressista.

A Constituição da República exige concomitantemente o “estado de flagrância” e que o tipo de injusto não seja contemplado pelo instituto da “fiança penal”. Nos termos do ordenamento processual penal vigente, considera-se em flagrante delito quem está cometendo a infração penal; acaba de cometê-la; é perseguido, logo após, pela autoridade pública, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração (CPP, art. 302). Atenção: conforme o art. 303 do CPP, nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência delituosa. O STF adotou esse entendimento no caso da prisão do ex-senador Delcídio do Amaral, o primeiro Senador preso no exercício do mandato. Curiosamente, no dia em que ultimada a prisão, o Senado Federal decidiu, por 59 votos a 13 e uma abstenção, por manter a prisão.

A inafiançabilidade dos tipos penais está prevista apenas no texto constitucional, tratando-se de matéria reservada ao poder constituinte (STF, ADI 3112). Conforme prevê art. 5º, XLII, XLIII e XLIV, são inafiançáveis os crimes de racismo (Lei Federal 7.716/1989 e 12.288/2010), de tortura (Lei Federal 9.455/1997), de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (Lei Federal 11.343/2006), de terrorismo (Lei Federal 13.260/2016), os definidos como crimes hediondos (Lei Federal 8.072/1990), e de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (Leis Federais 12.850/2013 e 7.170/1983 e Decreto Federal 5.015/2004). O primeiro e os últimos são imprescritíveis.

Então, o membro do Congresso Nacional somente pode ser preso cautelarmente (em flagrante delito) se cometer crime inafiançável, entendidos – somente – aqueles arrolados no texto constitucional (art. 5º, XLII, XLIII e XLIV). É importante dizer que a prisão para cumprir pena estabelecida em condenação penal transitada em julgado não é excetuada pela Constituição da República, tampouco está inserida na possibilidade de sustação pela respectiva Casa Legislativa, incluído o Congresso Nacional. Em palavras outras, os parlamentares federais ou locais não têm imunidade formal quanto à prisão em caso de condenação definitiva, conforme já decidido pelo Plenário do STF na AP 396 QO/RO, AP 396 ED-ED/RO, rel. min. Cármen Lúcia, 26-6-2013 (Info 712).

Na semana passada, dia 8-5, o Plenário do STF negou, por maioria de seis votos a cinco, as medidas cautelares nas ADIs 5823, 5824 e 5825, ajuizadas pela Associação dos Magistrados Brasileiros, em que se discute a legitimidade constitucional da extensão a Deputados Estaduais (e Distritais) das imunidades formais do art. 53 da Constituição da República para Deputados Federais e Senadores, especialmente a prevista em seu §2º, ou seja, a vedação da prisão cautelar, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.

No colegiado prevaleceram os argumentos do Ministro Marco Aurélio, relator da ADI 5823, de que as regras constitucionais respeitantes à imunidade dos Deputados Federais e Senadores são aplicáveis aos Deputados Estaduais (e Distritais). Acompanhando, votaram o Presidente, Ministro Dias Toffoli, e os Ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Divergindo, votaram os Ministros Edson Fachin (relator das ADIs 5824 e 5825), Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia, que concediam as liminares para suspender a eficácia de normas dos estados-membros do Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro e de Mato Grosso, que estendem aos Deputados Estaduais as imunidades formais dos Congressistas, previstas pelo art. 53 da Constituição da República.

Citado julgamento foi retomado na última quarta-feira, quando então foram colhidos os votos dos Ministros Roberto Barroso e Ricardo Lewandoswski. O primeiro juiz constitucional manifestou o entendimento de que as regras estaduais não vedam ao Poder Judiciário decretar medidas cautelares de natureza penal em desfavor de Deputados Estaduais, nem conferem poderes às assembleias legislativas para revogar ou sustar tais atos. Para o Ministro Roberto Barroso, os §§2º e 3º do art. 53 da Constituição da República não conferem poderes à Casa Legislativa local para confirmar ou revogar prisões cautelares ou outras medidas cautelares determinadas pelo Poder Judiciário mesmo, frisa-se, se interferirem sobre o exercício regular do mandato dos parlamentares estaduais ou, eventualmente, distritais.

Para o Ministro Ricardo Lewandowski, o §1º do art. 27 da Constituição da República é claro ao estender aos Deputados Estaduais e Distritais as regras constitucionais sobre imunidades dos parlamentares federais. “Estamos diante da proteção de um dos mais consagrados direitos da cidadania: a imunidade dos parlamentares, que representam a soberania popular”, anotou. A seu ver, os preceitos do art. 53 da Constituição da República preveem a “imunidade absoluta” dos parlamentares voltada ao livre exercício do mandato popular, excepcionada a hipótese de flagrante de crime inafiançável, “ancorada no pressuposto de que nenhuma prerrogativa funcional se presta a servir de escudo para a prática de crimes”.

Apanha-se ainda de seu substancioso voto, que pode ser acessado pela rede mundial de computadores (www), “[...] de um lado, temos a proteção da imunidade parlamentar. De outro, uma pretensa eficácia da persecução penal, antes inclusive do trânsito em julgado. Do ponto de vista de densidade histórica, a proteção da imunidade parlamentar possui muito mais peso e substância”, destacou, votando em negar as liminares.

O Presidente, Ministro Dias Toffoli, curiosamente, manifestou-se pela retificação de seu voto, lançado nos idos de 2017, quando deferia as liminares em menor extensão, sob o argumento de que o §2º do art. 53 da Constituição da República faz referência expressa aos membros do Congresso Nacional (Deputados Federais e Senadores) na questão relativa à prisão. Por outro lado, em outros dispositivos relativos à imunidade parlamentar, o texto cita Deputados Federais e os Senadores, o que, a seu ver, incluiria os parlamentares estaduais.

A decisão adotada pelo Plenário do STF recaiu sobre o pedido de medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade (ADIs 5823, 5824 e 5825), notadamente para suspender a eficácia de normas das Constituições de alguns estados-membros, porquanto estendem a imunidade formal (ou processual) a parlamentares estaduais, especialmente a possibilidade de as Casas Legislativas locais deliberarem sobre a prisão em flagrante, podendo determinar a sua imediata soltura e suspender o andamento do processo-crime, no caso de recebimento de denúncia por crime ocorrido após a diplomação.

Como escrito em linhas introdutórias, a federação brasileira estrutura-se em três níveis de emissão de poder, embora reconheçamos que seja delicada a situação dos municípios, motivo por que a Constituição da República não lhes entregou todos os predicados de uma entidade federativa. Com relação à União e aos estados-membros (e DF), a Lei Fundamental encerra tratamento linear no que respeita à ao sistema eleitoral, à inviolabilidade (imunidade material), às imunidades (a formal ou processual), ao sistema de remuneração, à perda de mandato, à licença, aos impedimentos e à incorporação às Forças Armadas.

É exatamente (e simplesmente) o texto constitucional, cujo preceito é encerrado nas letras do art. 27, §1º, quando a Constituição da República cuida dos “estados federados”, dentro do Título III, que corresponde à “Organização do Estado”. Parece não haver dúvidas razoáveis para infirmar a Lei das Leis.

A simetria de tratamento do tema imunidade parlamentar entre os Congressistas e os membros das Assembleias locais apresenta-se manifesta. O texto constitucional é chapado! Bem por isso que o assunto não deveria ser objeto de ácidas críticas por parte de determinado segmento social. Está escrito em nossa Lei Fundamental que todo o poder deverá emanar do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (CRFB/88, art. 1º). Parece claro o desígnio constituinte originário: as duas ordens componentes da federação por excelência, a União e os estados-membros devem receber tratamento equivalente, sobretudo quando as diferenças têm impacto desproporcional, comprometendo a existência e a liberdade do órgão.

O limite da criatividade do hermeneuta é o texto. Os limites semânticos que delicadamente o texto constitucional impõe. Se pensarmos o contrário (que a literalidade do texto não se consubstanciaria em um limite) cairíamos em uma contraditio in terminis, já que a interpretação de um texto, de um enunciado normativo, demanda um mínimo de fidelidade ao texto, sob pena de proceder-se à emenda da Constituição pela via de uma decisão judicial, comprometendo-se a lógica da democracia constitucional.

Reiterando, o art. 27, §1º, da Constituição da República, é muito claro ao estender a “teoria das imunidades” (inviolabilidade/material/freedom of speach e incoercibilidade pessoal relativa/prisão/freedom from arrest) aos parlamentares estaduais. Ademais, conforme a atual jurisprudência do STF, os provimentos judiciais que estabeleçam medidas cautelares que impossibilitem, ainda que indiretamente, o pleno e regular exercício do mandato parlamentar e de suas funções legislativas, serão remetidos dentro de vinte e quatro horas, obrigatoriamente, à Casa Legislativa respectiva, nos termos do §2º do art. 53 da Constituição da República, para que pelo voto da maioria de seus membros resolva sobre essa medida cautelar (STF. Tribunal Pleno. ADI 5526/DF, rel. orig. Ministro Edson Fachin, red. p/ o ac. Ministro Alexandre de Moraes, julgado em 11-10-2017 – Info 881).

Muito embora não apreciado o tema, a posição manifestada pelo STF na ADI 5526/DF (poder do Parlamento de dar a última palavra sobre as medidas cautelares que impeçam o regular exercício do mandato) deve ser inserida no regime jurídico protetivo dos Deputados Estaduais e Distritais, porquanto a sistemática do art. 27, § 1º, da Constituição da República, repita-se, determina que aos Deputados Estaduais e Distritais aplicam-se as mesmas regras previstas para os Congressistas, relacionadas com a inviolabilidade, as imunidades, a perda de mandato, a licença, os impedimentos, entre outros, de sorte que há legitimidade constitucional para a revogação da prisão em flagrante de parlamentares pela Casa Legislativa (Estadual ou Distrital).

Por último, afirmada a dignidade constitucional das Casas Legislativas locais para a revogação da prisão em flagrante de crime inafiançável de parlamentares estaduais ou distritais, como a suspensão do processo-crime, anota-se que a mesma prerrogativa não foi atribuída às Câmaras Municipais. O vereador não goza da incoercibilidade pessoal relativa (freedom from arrest), embora seja detentor da imunidade material (freedom of speach) quanto às suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do respectivo município, conforme prescreve o art. 29, VIII, da Lei Maior, por mais que lhe seja assegurada prerrogativa de foro pelas Constituições locais, observando, nesta última hipótese, a restrição quanto aos Tribunais Regionais Federais, cuja organização foi estabelecida na Constituição da República, inexistindo espaço de conformação a ser preenchido pelo constituinte estadual decorrente (STF. HC 94.059, rel. min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado a 6-5-2008, RHC 135.366, rel. min. Edson Fachin, julgado a 1º-8-2016).

Como citar?

FARIA, Fernando Cesar de Oliveira. A legitimidade constitucional para a revogação da prisão em flagrante de parlamentares pela Casa Legislativa (Estadual ou Distrital). Ponto na Curva, 2019. Disponível em: <http://www.pontonacurva.com.br/coluna-semanal/>. Acesso em: ... de 2019.

Fernando Cesar de Oliveira Faria [email protected]