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Cuiabá, 02 de Abril de 2025

Opinião Segunda-feira, 31 de Março de 2025, 10:23 - A | A

Segunda-feira, 31 de Março de 2025, 10h:23 - A | A

Ana Carolina Barchet

A prescrição sob ataque: quando o STF decide brincar de eterno

A prescrição, esse direito individual tão prosaico quanto essencial, sempre foi uma espécie de alívio coletivo

Imagine viver em um mundo onde o tempo não cura, não apazigua, não resolve. Um mundo onde uma dívida, um erro, um deslize ambiental de décadas atrás pode ressurgir das cinzas como um zumbi jurídico, pronto para te assombrar eternamente. Pois bem, o Supremo Tribunal Federal, em sua decisão no Tema 1.194, parece ter flertado com essa distopia ao declarar que “é imprescritível a pretensão executória e inaplicável a prescrição intercorrente na execução de reparação de dano ambiental, ainda que posteriormente convertida em indenização por perdas e danos”. Traduzindo: se você causou um dano ambiental, meu amigo, não há prazo de validade para a cobrança. O Judiciário te acha quando quiser — ou melhor, quando puder.

A prescrição, esse direito individual tão prosaico quanto essencial, sempre foi uma espécie de alívio coletivo para a humanidade. Ela existe para dizer: “Olha, já passou, vamos virar a página”. É o reconhecimento de que as relações jurídicas precisam de estabilidade, de um ponto final, de um “deixa pra lá” institucionalizado. Sem ela, vivemos sob a espada de Dâmocles, com a incerteza eterna de quando o passado vai bater à porta com uma intimação na mão. A evolução da sociedade, aliás, deve muito a essa ideia. Foram os direitos individuais — como o de não ser eternamente julgado por um erro — que pavimentaram o caminho para a modernidade, para a confiança nas instituições e para a paz social. Mas, ao que parece, o STF resolveu que o meion ambiente merece mais proteção que a sanidade dos cidadãos. Ironia ou não, o planeta agradece, mas o indivíduo chora.

Não me entenda mal: ninguém aqui defende que se jogue lixo tóxico nos rios e saia assoviando. A proteção ambiental é crucial, mas relativizar a prescrição para criar uma espécie de justiça atemporal soa como um exagero que flerta com a autofagia da democracia. Sim, autofagia: aquele momento em que o sistema começa a devorar suas próprias bases para se sustentar. Ao ignorar a prescrição, o Judiciário não só fragiliza um direito individual histórico como abre um precedente perigoso. Hoje é o dano ambiental, amanhã pode ser a dívida do cartão de crédito do seu avô que você nem sabia que existia. Onde isso para?

O argumento do STF tem seu charme, claro. O meio ambiente é um bem difuso, um patrimônio de todos, e os danos a ele podem reverberar por gerações. Mas convenhamos: transformar a execução de uma reparação em algo imprescritível, mesmo quando convertida em indenização (ou seja, em dinheiro vivo), é esticar a corda além do razoável. Se o objetivo é punir o culpado e reparar o dano, por que não confiar na eficiência do sistema dentro de prazos definidos? Será que o Judiciário, com seus engavetamentos e atrasos crônicos, realmente acredita que o melhor caminho é abolir o relógio? Parece mais um caso de “vamos mostrar que somos os guardiões do planeta” do que uma solução prática.

E aqui entra o toque de alerta: decisões como essa podem marcar o início do fim dos direitos individuais. Quando o Poder Judiciário começa a relativizar garantias fundamentais em nome de causas nobres — mas mal calibradas —, o cidadão comum, aquele que não tem ONG ou advogado caro na retaguarda, fica à mercê de um sistema que não perdoa, não esquece e, pior, não dorme. A prescrição não é um capricho jurídico; é uma conquista civilizatória. Desmontá-la, mesmo que aos pedaços, é como desmontar o andaime que sustenta a confiança nas relações jurídicas.

Então, fica o apelo: que tal proteger o meio ambiente sem transformar o tempo em inimigo do indivíduo? Que tal apostar em prazos razoáveis, fiscalização eficiente e punições que não dependam de um Judiciário com superpoderes temporais? Porque, no fim das contas, se até o planeta merece um futuro, nós, meros mortais, também merecemos um passado que descanse em paz.

Ana Carolina Barchet, advogada, Presidente da Comissão Nacional de Direito Ambiental do CFOAB 2022/2025.