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Opinião Sexta-feira, 01 de Novembro de 2024, 17:00 - A | A

01 de Novembro de 2024, 17h:00 - A | A

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Desconto em multas ambientais: direito adquirido ou justiça ambiental?

É essencial reconhecer que a administração pública tem uma certa discricionariedade na condução dos processos de conciliação, mas essa discricionariedade é limitada pelos princípios da legalidade, moralidade, eficiência



Nos últimos anos, temos assistido a um crescente debate sobre a concessão de descontos em multas ambientais, uma questão que toca o cerne da proteção do meio ambiente e da eficácia das sanções administrativas. Recentemente, uma controvérsia emergiu em torno da aplicação dos percentuais de desconto sobre multas administrativas, especialmente no contexto de mudanças legislativas que reduziram consideravelmente esses percentuais.

A questão principal é: quem protocolou um pedido de conciliação enquanto vigorava a regra do Decreto Estadual nº 1.436/2022, que previa descontos de até 90% para infrações envolvendo desmatamentos e crimes ambientais, tem direito adquirido a esses percentuais, mesmo que a decisão administrativa tenha ocorrido após a entrada em vigor do Decreto Estadual nº 275/2023, que reduziu os descontos para 60%? A resposta para essa pergunta não é simples e envolve uma série de princípios fundamentais do direito administrativo e ambiental.

Com o objetivo de estimular a célere recuperação ambiental mediante a regularização dos passivos identificados por ocasião da fiscalização e imposição de auto de infração ambiental, o legislador estadual trouxe o estímulo consistente na aplicação de descontos no valor da multa administrativa aplicada quando instituiu, no Código Estadual Ambiental, o Programa de Conversão de Multas Ambientais com redução de até 90% (noventa por cento) da multa simples (art. 127 da Lei Complementar nº 38/1995).

O Decreto Estadual nº 1.436/2022 trata do processo administrativo estadual de apuração das infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, regulamenta o Programa de Conversão de Multas Ambientais em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente.

Com relação à aplicação de descontos sobre multas ambientais, o Decreto estabelece diferentes percentuais de desconto dependendo do momento em que o requerimento é feito: 60% se apresentado na manifestação de interesse, 50% antes da decisão de primeira instância, e 40% antes da decisão de segunda instância. E isso tem alguns motivos, dentre os quais pode-se ressaltar a economia processual e celeridade na recuperação do dano ambiental, já que o objetivo do programa é justamente essa recuperação porque, mesmo com a concessão dos descontos, o autuado tem a obrigação de reparar integralmente o dano ambiental causado. Isso reforça a ideia de que o programa não compromete a responsabilidade ambiental, garantindo que o objetivo principal da legislação ambiental — a recuperação e preservação do meio ambiente — seja plenamente atendido, independentemente dos benefícios financeiros oferecidos como incentivo à conciliação.

O artigo também prevê descontos maiores (de até 90%) para infrações que não envolvam exploração florestal, supressão de vegetação nativa ou crimes ambientais. Nestes casos o máximo do desconto varia de 60% até 40%, de acordo com o momento em que for requerida a participação no referido programa ambiental. Descontos menores por se tratar de infrações mais graves, inclusive por questões relacionadas às mudanças climáticas e compromissos voluntariamente assumidos pelo Estado de Mato Grosso em fóruns e eventos climáticos nacionais e internacionais.

Com efeito, devido à sua vasta área florestal, abrangendo o bioma amazônico, o cerrado e o pantanal, Mato Grosso desempenha um papel crucial na preservação ambiental e no combate às mudanças climáticas.

Durante eventos climáticos como a Conferência das Partes da Convenção -Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP), o Estado tem reafirmado compromissos importantes, como a redução das emissões de gases de efeito estufa, o combate ao desmatamento ilegal e a promoção de uma economia sustentável. Mato Grosso também integra iniciativas como a "Produzir, Conservar e Incluir" (PCI), que visa o desenvolvimento econômico aliado à conservação ambiental e à inclusão social.

Esses compromissos são essenciais para promover a sustentabilidade e a proteção de ecossistemas frágeis, ao mesmo tempo em que reforçam a necessidade de práticas que integrem preservação ambiental e desenvolvimento econômico. A participação de Mato Grosso em eventos climáticos é uma demonstração de seu esforço para alinhar políticas públicas às metas globais de enfrentamento das mudanças climáticas, incluindo compromissos com a redução do desmatamento e a implementação de práticas agrícolas mais sustentáveis.

Esses compromissos também visam atender às metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, como o ODS 13 (Ação Contra a Mudança Global do Clima), o ODS 15 (Vida Terrestre) e o ODS 16 (Instituições Eficazes), promovendo um equilíbrio entre o crescimento econômico e a preservação ambiental para garantir um futuro sustentável.

É nesse contexto que surge a discussão sobre a existência de um direito adquirido a descontos de até 90% para infratores que desmataram ilegalmente e, ao tentar se regularizar, protocolaram um pedido de conciliação durante a vigência da regra que permitia tais descontos. Em 9 de maio de 2023, no entanto, foi editado o Decreto Estadual nº 275/2023, que reduziu os percentuais de desconto para 60%, gerando questionamentos sobre a aplicabilidade das normas e o alcance do direito adquirido nesses casos.

Primeiramente, precisamos entender o conceito de "direito adquirido". A Constituição Federal protege o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. No entanto, para que um direito seja efetivamente adquirido, ele deve estar completamente incorporado ao patrimônio jurídico do titular, de forma plena e irrevogável, com o cumprimento de todos os requisitos legais. No caso em análise, o mero protocolo de um pedido de conciliação não é suficiente para consolidar um direito adquirido. Isso se traduz em uma mera expectativa de direito, que está sujeita a alterações legislativas e trâmites administrativos até que se realize a Audiência de Conciliação, que é um ato eminentemente negocial. Após o protocolo do pedido são realizadas as tratativas entre órgão ambiental e autuado, podendo contar com a participação do Ministério Público, Polícia Judiciária Civil e Procuradoria Geral do Estado. Segue-se as análises de documentos, propostas de intervenções no ambiente degradado e definição dos termos do acordo. Havendo consenso, firma-se um Termo de Compromisso Ambiental, no qual são estabelecidas todas as condições para recuperação do bem lesado e pagamento da multa.

O princípio da legalidade, que rege toda a administração pública, estabelece que os atos administrativos devem ser realizados conforme a legislação vigente no momento da decisão, e não com base na legislação anterior que possa ter sido mais favorável. Portanto, o reconhecimento de descontos de 90% sem uma decisão administrativa consolidada vai de encontro a esse princípio.

Outro ponto crucial é a questão da isonomia. Se aceitássemos que alguns infratores ambientais têm direito ao desconto de 90% enquanto outros, em situações idênticas, teriam apenas 60%, estaríamos tratando os iguais de forma desigual, violando o princípio da equidade. A administração pública deve atuar de maneira imparcial e igualitária, garantindo que todos os cidadãos sejam tratados com o mesmo rigor e com os mesmos direitos, especialmente em questões que afetam o interesse coletivo, como a proteção ambiental.

Mais ainda, é preciso considerar o papel das sanções ambientais. Elas não têm apenas uma função punitiva, mas também uma função pedagógica. A aplicação de multas com descontos exageradamente generosos enfraquece o caráter preventivo das normas ambientais, desincentivando comportamentos responsáveis. Um desconto de 90% representaria, na prática, uma quase anistia, o que comprometeria a eficácia das penalidades e enviaria a mensagem errada para a sociedade. Precisamos de uma abordagem que reforce o compromisso com a proteção ambiental e que leve a sério as infrações contra o meio ambiente.

A legislação ambiental deve ser interpretada com responsabilidade, levando em conta princípios como a equidade intergeracional, que nos lembra da importância de proteger os direitos das futuras gerações. Além disso, é fundamental que a administração pública atue de forma transparente, eficaz e comprometida com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 16, que promove a paz, justiça e a construção de instituições eficazes.

Por fim, é essencial reconhecer que a administração pública tem uma certa discricionariedade na condução dos processos de conciliação, mas essa discricionariedade é limitada pelos princípios da legalidade, moralidade, eficiência e, principalmente, o interesse público. A conciliação é um mecanismo valioso para resolver conflitos de forma célere e eficaz, mas deve ser utilizada de maneira justa e conforme a legislação vigente.

A análise da questão à luz da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), anteriormente conhecida como Lei de Introdução ao Código Civil, também é fundamental para entender a aplicação das normas em situações de transição legislativa. O artigo 6º da LINDB estabelece que a lei nova possui efeito imediato e geral, respeitando apenas o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Para que se possa alegar um direito adquirido, este deve estar plenamente constituído e definitivamente incorporado ao patrimônio do interessado, conforme salientado alhures, o que não ocorre com um simples pedido de conciliação ainda não decidido pela administração. Dessa forma, como a administração pública tem o dever de aplicar a legislação vigente no momento da decisão, a nova lei que reduziu os percentuais de desconto deve ser observada, garantindo a aplicação do princípio da legalidade e assegurando que uma expectativa de direito não seja equivocadamente tratada como um direito adquirido.

Não se admite a teoria do fato consumado nem existe direito adquirido contra o meio ambiente (STJ, AgInt no AREsp 2573270 / SC), uma vez que a proteção ambiental é um princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal, que prioriza o interesse coletivo e o equilíbrio ecológico sobre interesses individuais. A legislação ambiental tem caráter dinâmico e pode ser ajustada para responder de forma mais eficaz às necessidades de preservação ambiental, visando proteger as presentes e futuras gerações. Assim, benefícios ou concessões que possam comprometer o meio ambiente não se consolidam como direitos adquiridos, pois o dever de proteger e restaurar o patrimônio ambiental prevalece sobre qualquer pretensão que possa prejudicar o interesse público e o desenvolvimento sustentável.

Diante de tudo isso, mesmo que o interessado tenha protocolado requerimento de inclusão no Programa de Conversão de Multas Ambientais quando vigente a possibilidade de redução de até 90% do valor da multa em casos de exploração florestal ou crimes ambientais, o desconto máximo de 60% previsto no Decreto Estadual nº 275/2023 deve ser aplicado, pois reflete a necessidade de manter o equilíbrio entre o direito dos administrados e o dever de proteger o meio ambiente. A aplicação uniforme da lei é a melhor forma de garantir que a justiça ambiental prevaleça, respeitando tanto os princípios jurídicos quanto os imperativos éticos de nossa responsabilidade com o planeta.

Marcelo Caetano Vacchiano é promotor de Justiça em Mato Grosso