Não raramente, paira, no plano das contratações públicas, um ambiente de desconfiança, sobre o qual há, especialmente por parte de quem exerce o controle externo, uma falsa pressuposição de que licitar impõe um certo contorno corruptivo.
Descrente da higidez de um processo administrativo decoroso – e propício para o mais indene cumprimento dos princípios que regem a administração pública –, despontam códigos de conduta, múltiplos programas de integridade, um arsenal de normas a serem cumpridas, dentre outras precauções tendentes a evitar qualquer malefício danoso aos cofres públicos.
Inquestionavelmente, não se questiona qualquer medida que tenha por finalidade proporcionar a mais eficiente e lídima contratação pública. Todavia, por outra face, a inibição não pode ser desproporcional à plena atração do bom licitante e possível parceiro privado.
Tais riscos são alinhados – por aquele que pretende formar uma relação jurídica contratual com a administração pública – de forma prévia, adornando todos os contratempos que possam tornar o contrato mais oneroso, os quais não se resumem a desequilíbrios econômicos ou prejuízos que afetem a pretendida margem de lucro, natural (e salutar) a um modelo econômico capitalista. Definitivamente, a licitação não pode impor barreiras desnecessárias.
Subjetivamente, qualquer entrave para o licitante estaria adstrito às estimativas prévias de riscos e resultados, não sendo natural vislumbrar atropelos que, no âmbito da iniciativa privada, uma vez resolvidos de forma autônoma, tenham o condão de serem expandidos para outras esferas, inclusive a criminal.
Estigma
E aqui paira um ponto de inquietação: tudo o que o parceiro privado faz, em desalinho ao edital, carrega, necessariamente, um propósito doloso? A resposta deve ser peremptoriamente negativa.
Sucede que, na prática, nem sempre essa é a interpretação conferida pelos agentes públicos que controlam o processo de contratação, impondo, aos licitantes e contratados, um antecipado – e prejudicialmente preconceituoso – estigma negativo, induzindo para qualquer deslize uma mancha propositalmente lesiva à administração contratante.
Esse raciocínio deve mudar e, para isso, é imprescindível que haja, antecipadamente, uma separação entre as gravidades do que possa ser conceituado, genericamente, como falhas, das mais simples – lapsos mesmo – às mais gravosas, cujas tipificações mais severas não devem ser afastadas.
Recomposição de perdas e danos
Estabelecidos esses apontamentos, partamos para exemplos práticos mais corriqueiros, suficientes para iluminar o título contemplado nesse artigo.
É bastante comum, sobretudo em contratos cuja execução se confunde com a entrega do objeto – os ditos contratos por escopo –, haver um ou outro defeito na entrega do produto, fato este que, na iniciativa privada, é resolvido pelos mais diversos tipos de procedimentos, incluindo substituição do objeto danificado ou em desconformidade com o edital, recall, indenização reparatória, dentre outros tantos instrumentos que eliminam o descrédito e proporcionam o funcionamento de uma plena economia de mercado.
Esse procedimento natural de recomposição de perdas e danos ainda não foi absorvido – sabe-se lá por qual estímulo – pelos órgãos de controle, cujo objetivo, em não raras ocasiões, é penitenciar, talvez demonstrando uma margem de superioridade punitiva sem qualquer conjunto de expiação.
Logo, seguindo o exemplo de um contrato por escopo, sendo entregue o objeto em desconformidade com o edital, cabe a um representante do Ministério Público – ou qualquer agente de controle (sobretudo do controle externo) – intencionar medidas mais severas cuja finalidade pode coincidir com uma composição reparatória para além da substituição do próprio objeto licitado? Ansiamos que não.
Esforço concentrado
Partindo do pressuposto de que a não recalcitrância do contratado em substituir o objeto – tão logo cientificado da falha, defeito ou desconformidade com o edital – é indiscutível, questiona-se o comportamento de um agente de controle externo quando pretende a utilização do poder punitivo do Estado para coerção e outras medidas persecutórias.
Os propósitos de satisfação social são ainda mais suspeitos quando, no decorrer de um procedimento preparatório, um membro do Ministério Público propõe uma transação para evitar uma persecução penal, como se uma ou outra tipificação penal existisse como simples decorrência natural de descumprimento do edital.
Distraído da prudente observação da gradação da conduta, à míngua de qualquer mensuração quanto à gravidade na entrega do objeto, o poder público passa a se utilizar da espada da persecução penal para obtenção, sem qualquer pejo, de uma vantagem econômica em relação ao contratado. A supressão da persecução penal – que tem elevados custos para o contratado – é uma revelação de que o Ministério Público age sem qualquer desconforto para obtenção de mais benefícios além daqueles previamente previstos no instrumento convocatório.
Logo, o receio em sofrer procedimentos mais severos – sejam ações de improbidade administrativa, sejam processos criminais – tende a forçar o agente privado a transacionar, mensurando os riscos que podem advir das evitáveis e indevidas medidas de potenciais conteúdos condenatórios.
O elevado dispêndio de tempo, recursos financeiros e possíveis condenações inclina-se à majoração dos preços ofertados no momento da disputa, considerando que tudo (inclusive o que não é previsto no escopo editalício) tem de ser metrificado pelo licitante.
Estabelecidos tais pontos, é indispensável que os agentes de controle concentrem esforços em práticas administrativas realmente lesivas, evitando a evasão de bons licitantes do ambiente das contratações públicas. A maior beneficiada será a própria administração pública.
Guilherme Carvalho é é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e políticas públicas