O direito processual obedece a uma regra questionável: as leis de “natureza processual” penal são imediatamente aplicáveis. Incidem aos processos em trâmite, passando a regrar processualmente fatos anteriores à sua vigência. O inverso acontece com as leis de “natureza penal”. Por isso, em matéria processual vigoraria o tempus regit actum, ao contrário do fato criminoso, relacionado com o tempus delicti commissi regit actum.
É predominante o entendimento de que o princípio da irretroatividade governa as leis de natureza penal. Conta inclusive com consagração expressa na Constituição da República, art. 5º, XXXIX (não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal) e no XL (a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu). É também a previsão do art. 1º do Código Penal. A lei criadora de um tipo de injusto só sairá do papel para colher os fatos que se sucederam após o advento de seu vigor (produção de efeitos).
O Sistema de Justiça Criminal encontra-se estritamente vinculado à lei. O princípio da irretroatividade reconhece o âmbito de liberdade do indivíduo diante do direito de castigar do Estado (direito de penar). Pode-se dizer mais: trata-se de umas das exigências próprias de um Estado Democrático de Direito, sem o qual estaria instalada a perseguição penal post factum, consequencialismo aberrante de regras humanas elementares.
No que respeita aos atos propriamente processuais, desviantes das ideias ligadas ao fato-crime, porque típicos de processo, manda o Código de Processo Penal, em seu art. 2º: “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. A questão é de irretroatividade em relação aos atos já ultimados, mas de incidência imediata aos atos pendentes e futuros.
Em síntese: a lei processual penal é sim irretroativa, mas apenas e tão somente quanto ao ato processual. Aquele ultimado. Essa irretroatividade pouco se importa com o fato-crime, tipo objetivo de injusto. Consoante o Código de Processo Penal, válidos serão os atos operacionalizados sob o pálio da lei processual anterior. Essa incolumidade, ou blindagem, não será aceita aos novos atos, porque para estes a lei nova será imediatamente incidente.
É a opinião majoritariamente preconizada pelos cuidadores do processo penal, que consideram o processo fracionado, que os atos processuais são realizados de modo independente. Teriam a característica pro futuro, permitindo que a lei nova seja aplicada de imediato aos atos processuais ainda não realizados. O que, além do mais, daria ainda ao processo uma característica de ultratividade, preservando os atos anteriores, posto que aqueles realizados sob a égide da lei anterior não perderiam vigência, pois valorados de acordo com a lei vigente no momento de sua produção (teoria do isolamento dos atos processuais).
Por isso a doutrina considera, em geral, que a nova lei processual penal pode incidir sobre investigação ou processo relativo a crime cometido antes da sua entrada em vigor, ainda que ela seja prejudicial aos interesses da pessoa humana sujeita ao processo penal oficial, porque supostamente não influenciariam no juízo de imputação penal, na sanção penal aplicável etc. Nesse pensamento, a lei processual penal disciplina o processo e o procedimento, sem ter relação direta com o direito de punir do Estado.
São inconvincentes os argumentos dessa cartesiana separação. Metodologicamente, não se deve abordar o tema sob a ótica da dicotomia entre direito penal (leis penais, substantivas) e direito processual penal (leis processuais penais, adjetivas), pois sugestiona erro de natureza grave. A justificação plausível para a separação ou classificação de assuntos, coisas e, mais detidamente ao problema, de “institutos jurídicos”, é a lógica e a utilidade. A relação é gemelar. Sem lógica e utilidade não há razão para estremar assuntos, coisas e sobretudo institutos jurídicos.
O direito deve se ocupar – apenas – de instrumentalizar o fazer, não se ocupando do conhecer. O direito é realidade que pertence à técnica, não propriamente à ciência. Essa afirmação também requer uma aclaração: o processo penal oficial deve ser entendido como unidade (integral), não é fracionado em partes distintas, particulares. Ele é um encadeamento de atos, sendo regido por uma lei processual como um todo, sendo a divisão em material, processual, reflexão meramente acadêmica, vazia no que diz respeito à essência de norma penal repressiva.
A irretroatividade deve ser compreendida de modo amplo, sendo por ela alcançada toda disposição (sancionadora ou não) desfavorável ou restritiva a direitos individuais do cidadão. É indiferente o lugar sistemático da lei, a geografia da norma jurídica, se se encontra na parte geral ou especial do Código Penal ou no Código de Processo Penal, porque é impossível separar logicamente o âmbito de proteção do direito penal e do direito processual. De modo definitivo: toda e qualquer modificação gravosa, prejudicial, deve estar submetida à irretroatividade, sendo afastada a diferenciação entre normas de direito material e normas processuais.
O aparelhamento legal do Sistema de Justiça Criminal é moeda sem cara e sem coroa. Apenas moeda. Esclareça-se: não há falar em leis penais (materiais ou substantivas), leis processuais penais (adjetivas) e leis mistas. Existe o ordenamento jurídico penal, o contributo legislativo criminal, leis criminais ou, em redução terminológica mais aceita, leis penais. O direito compreende a lei criminal. Leis criminais são leis que versam sobre o conteúdo jurídico próprio de crime e de persecução criminal decorrente – o processo é parte integrante da sanção penal –. São as que definem os delitos, as respectivas sanções penais e a diacronia que encerra a perseguição da verdade possível, que mais se aproxima, talvez, da ideia de justificação, já que verdade é um conceito metafísico.
O devido processo legal, previsto pelo art. 5º, LIV, da Constituição da República, porque matriz axiológica dos princípios constitucionais do processo, impõe uma interpretação segundo a qual a lei processual aplicável deverá ser aquela mais favorável aos interesses do cidadão, abrindo espaço para a retroatividade e ultratividade, e não pela aplicação da cláusula tempus regit actum, que deve ser reservada aos processos não penais, pela impossibilidade de distinção entre direito penal e processual, na ótica da tutela dos direitos individuais da pessoa humana sujeita ao processo penal oficial.
De acordo com o Sistema de Justiça Criminal brasileiro, a intervenção a direitos fundamentais deve seguir o princípio da legalidade (mandato de certeza e irretroatividade, à exceção da lei favorável), situação que deve ser observada na aplicação de toda e qualquer lei criminal. Tudo se relaciona com o controle da arbitrariedade do exercício do poder penal, isto é, a irretroatividade da lei processual penal é uma manifestação muito importante da vontade comum de se impor freios ao Estado, evitando que pessoas humanas sejam encarceradas por motivos distintos da prática de um fato punível (grave).
Sinteticamente, com a ideia de lei processual penal prejudicial, irretroativa, portanto, rechaça-se a manipulação dos tipos penais sob a artificial plástica da manipulação da estrutura do processo. A irretroatividade da lei processual penal consiste em uma garantia fundamental, devendo ser interpretada em sentido amplo, sendo irrelevante a natureza da norma – material ou processual – que não tem poder de alterar sua essência de norma penal repressiva, de efeitos concretamente prejudiciais aos interesses da pessoa humana sujeita ao processo penal (a pessoa destinatária dos direitos individuais elencados na Lei Fundamental de 1988).
Resultariam inócuos os direitos individuais consagrados pelos cânones do princípio da legalidade (CRFB, art. 5º, XXXIX), da retroatividade benéfica (CRFB, art. 5º, XL) e do devido processo legal (CRFB, art. 5º, LIV), se fosse autorizada a modificação de leis processuais penais sem critério, fazendo-as incidir seus efeitos imediatos ao processo em curso, solapando, vale dizer, os próprios direitos individuais da pessoa humana sujeita ao processo penal. Existe um paralelo entre a legalidade prévia da tipificação dos delitos e das penas e a estrutura prévia do processo. A relação é de incindibilidade, porque o critério é de hermenêutica inclusiva dos direitos individuais. A lei é esfera de proteção do indivíduo. É limite do arbítrio. A massificação do direito de tutela social não deve ser aplicada para destituir posições consolidadas, sendo, uma delas, expressão do direito à proteção legal superveniente.
O direito repressivo criminal tem na linguagem estrita o limite do exercício do poder punitivo. O critério do direito penal, sabe-se, é de exercício do direito de punir, desde a elaboração de leis, que deve ser guiada pelo incondicional respeito aos limitantes matizes constitucionais, até a incidência da norma penal, resultantes da hermenêutica, pelas autoridades investidas na investigação preliminar, pelo órgão da acusação oficial e pela autoridade judicial, que deve entregar a tutela jurisdicional penal, em sua dimensão de garantias. Todas, sem exceção, têm um compromisso constitucional de agir em conformidade com o moderno processo penal democrático (tutela do indivíduo a ele sujeito).
O processo penal oficial serve, portanto, como catalisador da tutela individual do cidadão frente ao poderio belicoso do Estado-Investigador-Acusador-Julgador, garantindo à pessoa humana um fôlego protetivo, sujeitando-a a um processo limpo, a uma norma criminal irretroativa, quando desfavorável, cuja integralidade – pelas razões expostas – deve ser considerada pelos atores processuais. A norma criminal restritiva não tem capa, não tem nome, nem apelido, tem essência, sendo irretroativa, sempre.
Fernando Cesar de Oliveira Faria é Advogado, especialista e mestrando em Direito Penal.
Diego Renoldi Quaresma de Oliveira é Advogado, especialista e mestrando em Direito Penal.