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Coluna Semanal Terça-feira, 30 de Abril de 2019, 20:05 - A | A

30 de Abril de 2019, 20h:05 - A | A

Coluna Semanal /

O modelo de persecução criminal e a inconstitucional condução de investigação preliminar pelo Poder Judiciário

Prezados leitores do Ponto na Curva, do novo Ponto na Curva! Já se percebe facilmente, conquanto breve o tempo de existência, que o Ponto na Curva estabeleceu-se como o principal veículo de mídia jurídica do estado de Mato Grosso

Fernando Cesar de Oliveira Faria
[email protected]



Prezados leitores do Ponto na Curva, do novo Ponto na Curva! Já se percebe facilmente, conquanto breve o tempo de existência, que o Ponto na Curva estabeleceu-se como o principal veículo de mídia jurídica do estado de Mato Grosso. Em literatura poética, ousamos, podemos pensar em poesia e cristal. Em Drummond, que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era. A joia da informação em tempos estranhos é um ponto na curva. Lutemos para multiplicar esses pontos, conectando-os na busca do estabelecimento de uma reta, compreendida como um segmento que nos remeta ao terreno fértil em que os direitos humanos fundamentais sejam concretizados, não escamoteados, como se os destinatários fossem marionetes, fantoches ou joguetes.  

A estimada direção do Ponto na Curva formalizou convite para assinar uma coluna jurídica semanal. A honra pelo chamado levou-me a aceitá-lo. O pontapé será conversa leve sobre a situação jurídica da condução, pelo Poder Judiciário, de investigação criminal em nível de coleta de elementos de informação (inquérito “policial”). Antes, um breve passeio.  

Para Radbruch, o Direito é o conjunto das normas gerais e positivas, que regulam a vida social. Está escrito em sua Introdução à Filosofia do Direito e a inscrição nacional veio à mão do querido professor Washington de Barros Monteiro. Dificílima é a tarefa do conceito, ou seria se abortado o intento, pelo que gigantes ao longo do espaço-tempo dedicaram-se ao espectro científico desse especial tema. A positividade do Direito evidencia a imprescindibilidade do estabelecimento de regras, pelas quais decorrem o certo e o errado, cuja não observância, motivada por falsa percepção da realidade ou marcada pelo regime de violação psicológica atribuída ao dolo, ensejaria a aplicação de uma sanção. Bem assim que nós, os seres humanos, nutrimos relação mediante a sociedade, a societas, uma associação amigável de uns com outros.  

O globo terrestre é formado por diversos aglomerados de humanos, nações, países e comunidades. Possuem regime jurídico respeitante à organização, sendo constituídas por normas de comportamento, evidenciando claramente onde termina o direito de um em relação ao seu semelhante, e onde começa o dever mútuo, e vice e versa. Considerações assim não parecem afastar-se do bom senso. A ideia de respeito às regras é comum; nós reputamos ilegais condutas como o requerimento financeiro de um servidor público como condição para a prática de ato de ofício, e muitos “eteceteras”.  

O país em que vivemos constitui-se em uma República Federativa. Ela é formada pela união indissolúvel dos estados-membros, dos municípios e do Distrito Federal. O nosso Estado é do modelo Constitucional e Democrático de Direito, tendo por fundamentos a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e o pluralismo político. São as primeiras letras da nossa Lei Fundamental, que em outubro último completou trinta anos de aprovação.  

O regime político adotado pelo Brasil é o princípio democrático, a significar que vivemos em um Estado destinado a assegurar o pleno exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. O regime democrático também é fundado no princípio da soberania popular, segundo o qual todo Poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes legitimamente eleitos, ou diretamente, nos termos do parágrafo único do art. 1º da Constituição.  

No Estado Democrático e Constitucional de Direito, o ordenamento jurídico consagra instrumentos que introduzem o povo no governo. A preocupação é com a efetividade e com a dimensão material dos direitos humanos fundamentais. Sabemos que atualmente o maior problema não é a consagração dos direitos, mas sim que eles saiam do papel e possam ir definidamente para a vida das pessoas; possam ser aplicados concretamente. O enunciado normativo, o relato abstrato da lei, se não concretizado, não passa de lei no livro.  

Nessa ordem de ideias, a democracia deve ser vista sob o ângulo substancial, assumindo a garantia de direitos fundamentais para todos, inclusive para as minorias, para que a Constituição seja aplicada diretamente aos conflitos sociais. Essa visão de Constituição pode ser chamada de essencialmente jurídica, pelo que devemos abandonar a percepção de documento meramente político. A institucionalização do Estado Democrático e Constitucional de Direito possibilitou, por exemplo, a expansão da jurisdição constitucional, entendido como o mecanismo encarregado de assegurar a supremacia da Constituição.  

O delito nunca foi e nunca será tolerado. É contrário à regra de convivência. A incursão teórica em torno da insignificância do fato típico, que afasta a característica indesejável da infração penal, tem incidência perfeita perante o sentido analítico do crime. Não ontologicamente, considerada a perspectiva aprisionada no intelecto de cada ser da sociedade, que por desdobramento do princípio democrático é o senhor e o responsável direto de cada conduta definida como delito.  

Considerada como um documento axiologicamente aberto e sensível na garantia de direitos humanos, nossa Constituição abraça uma visão humanitária relativamente à disciplina do Direito Penal e do modelo de processo penal, acusatório por excelência. Constam os mandados de criminalização, um porto seguro ao legislador para criar leis rígidas para determinadas condutas; nesse caso, o constituinte indicou como de alta potencialidade lesiva a direitos inatos do ser humano. Ninguém duvida da diferença entre a conduta humana definida como crime de latrocínio (CP, art. 157 § 3º parte final) e a imputação de lesão corporal culposa (CP, art. 129 § 9º). O esquema de imputação, de inclusão da pessoa humana dentro de um processo-crime, sua condução, sua dialética, e, conclusivamente, o fim do processo, marcada pela definição constitucional da culpa, também não escapou dos finos olhos do constituinte de 1988.  

Com efeito, a sensibilidade da Constituição com o Direito Penal e com o modelo acusatório de processo penal é manifesta. A Lei Fundamental, além de reconhecer expressamente vários direitos e garantias humanas, como a isonomia (paridade de armas), devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, permite a incorporação de outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Por essa razão, o Direito Penal é reflexo das ordens emanadas diretamente do texto constitucional ou do bloco de constitucionalidade, porquanto subordinado à sua força normativa.  

Finalmente, devemos entender que todo o segmento jurídico, toda a tessitura normativa, reclama a análise constitucional. Para investigarmos a aplicação de determinado tipo de injusto à conduta perpetrada (juízo de imputação), devemos interpretá-lo. O exercício da hermenêutica atrai necessariamente o exame da própria Constituição. Toda interpretação normativa é interpretação constitucional. Isso se deve, como estudado por Luís Roberto Barroso, ao fato de a Constituição passar para o centro do universo jurídico.  

Dentro da perspectiva de Estado Democrático e Constitucional de Direito é que se situa o modelo constitucional de tipificação de condutas, já que o Direito Penal tem na linguagem o limite do exercício da competência punitiva (veja-se, por exemplo, estimado leitor, que o conceito de coisa semovente não existe em Direito Penal, razão pela qual a subtração de um animal não seria outra coisa que furto, embora lá escrito coisa móvel). Situa-se também o modelo constitucional de processo penal, acusatório por absoluta regra, em que as decisões do Poder Público, detentor da função sancionadora oficial, são obrigatoriamente atingidas pela ética, sobremodo porque os atos restritivos de direito requerem idônea fundamentação, pena de decretação de nulidade, como preconiza o art. 93, IX.  

A Constituição adotou o sistema acusatório como modelo constitucional de processo penal, um devido processo legal criminal, significando que as partes (a defesa e, em regra, o Ministério Público/MP) situam-se em plano de equivalência dialógica, produzindo as provas perante o juiz ou o tribunal imparcial. Esse juiz ou tribunal é o competente para julgar o caso penal com fundamento nas provas produzidas sob um rito previamente determinado pela lei penal. As funções não são coincidentes. A separação é absoluta. O MP é o acusador oficial, como é, em alguns casos, o órgão oficial de investigação (no caso do PICs - procedimento de investigação criminal, previsto em resolução do CNMP). Juiz ou tribunal é o órgão oficial que aprecia a pretensão penal deduzida pelo órgão oficial da acusação. MP não julga; juiz ou tribunal não acusa.  

Recentemente, como amplamente noticiado pelos veículos de mídia, o Presidente do STF determinou a instauração de um inquérito para apurar notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingiriam a honorabilidade e a segurança do STF, de seus membros e familiares, extrapolando a liberdade de expressão (Portaria GP 69/2019, que ocasionou a abertura do Inquérito 4781). Fundamentou-se o STF no art. 43 de seu Regimento Interno, segundo o qual, ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição.    

A comunidade jurídica nacional ficou estarrecida. Como poderia o órgão jurisdicional máximo da República presidir investigação criminal, em nível de inquérito, conhecido academicamente como um procedimento administrativo cujo objeto é encontrar os alicerces elementares para a adequação perfeita do juízo de imputação (autoria e materialidade)? Como nós cuiabanos, cê que vê, escuta!  

O juízo de imputação pertence ao MP, nos exatos termos do art. 129, I, da Constituição, já que ao órgão de acusação oficial compete promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei. No máximo, quando em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao MP as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia, como está, a propósito, previsto no art. 40 do CPP. O modelo constitucional acusatório assim preconiza.  

O leitor pode estar se perguntando: como o STF faz uma coisa dessas? Sendo Supremo? Bem, os ministros são sabedores, por óbvio, da sistemática preconizada pela Constituição, notadamente o modelo acusatório de processo penal. Ao menos teoricamente são providos de notável saber jurídico, reputação ilibada e têm por ofício maior a guarda da Lei Fundamental (CRFB/88, arts. 101 e 102). Merecem respeito, sim. Muito(s) sim(s).  

Ao que parece, o fundamento jurídico utilizado não se coaduna perfeitamente ao modelo constitucional de processo penal acusatório, consagrado não apenas pela Constituição, como por leis federais e tratados internacionais (as Regras de Havana de 1990, p.ex., estatui que as funções dos magistrados do Ministério Público deverão ser rigorosamente separadas das funções de juiz – art. 10). O STF possui entendimento discutível no tocante ao regimento interno, especialmente sobre a sua estrutura. Para o STF, a parte pré-constitucional, anterior a 5-10-1988, gozaria de status legal, ou seja, de lei ordinária, infraconstitucional, portanto. Esse parece ter sido um dos fundamentos para a instauração do Inquérito 4781.  

No entanto, respeitando a história do STF, penso que existem razões outras para infirmar a linha conclusiva. Uma delas seria a de que a função judicante não se confunde com a função de acusador oficial. Sejamos francos, todos nós reunimos condições para dizer que juiz não preside inquérito policial; juiz não colhe nem organiza elementos de informação; juiz não participa da formação do juízo de imputação; juiz julga, categoricamente. Esse pensamento inicial é categoricamente verdadeiro.  

Do contrário seria impossível assegurar-se a imparcialidade da função judicante, comprometendo a aplicação da Justiça. É verdade que o Código de Processo Penal/CPP prevê a possibilidade de o Poder Judiciário requisitar a instauração de inquérito policial (CPP, art. 5º, II). A palavra é requisitar (que também nos parece conflitar com o princípio acusatório do processo penal brasileiro). Linha alguma consta da lei sobre o papel de condutor, de Presidente, do procedimento de investigação preliminar.  

Detalhe importante é que a Procuradoria-Geral da República promoveu o arquivamento do Inquérito 4781. Raquel Dodge afirmou que não é competência do Poder Judiciário fazer o trabalho de investigação em um inquérito. “Essa decisão transformou a investigação em um ato com concentração de funções penais no juiz, que põe em risco o próprio sistema penal acusatório”, escreveu a Procuradora-Geral da República.  

O STF não aceitou. Disse que “não se configura constitucional e legalmente lícito o pedido genérico de arquivamento da Procuradoria Geral da República”. Na prática, o STF não acolheu a promoção de arquivamento, sem, contudo, indicar o preceito em que estaria fundada a rejeição. O modelo constitucional acusatório de processo penal, cuja concreção é extraída do devido processo legal, deixa claro que a separação das funções de acusar e julgar é fundamental para garantir a imparcialidade do órgão jurisdicional.  

Além disso, vivenciamos caso semelhante. As graves notícias de escutas clandestinas que, em tese, teriam sido ordenadas por autoridades civis e militares de Mato Grosso. No âmbito do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, um membro teria concentrado as funções de investigador e de julgador. Provocado, o Superior Tribunal de Justiça concluiu pela violação do esquema processual acusatório, pelo que avocou o inquérito que tramitava em Cuiabá, nos termos dos arts. 105 e 129, I, da Constituição.  

Convém salientar que ainda em 2004 o Plenário do STF aboliu definitivamente do nosso sistema processual penal a função do juiz investigador ou inquisidor, quando na ADI 1570/DF declarou inconstitucional o art. 3º da Lei Federal 9.034, de 3-51995. De mais, conforme decisões reiteradas do Min. Celso de Mello, o Plenário do STF, em diversas oportunidades, enfatizou o especial aspecto fundamental inerente ao modelo acusatório consagrado pela Constituição, que impõe a clara e absoluta distinção entre as funções de investigar e de acusar, de um lado, e a de julgar, de outro (ADI 5104-MC/DF).  

A partir dessa lógica, a jurisprudência constitucional do STF fixou algumas consequências jurídicas, entendidas como restrições ou impedimentos para a participação do juiz no inquérito policial e até mesmo durante a condução do processo-crime, destinadas a preservar a regra da imparcialidade, como viabilizar o devido respeito ao tratamento razoavelmente equânime que deve haver entre a acusação oficial e a defesa (paridade de armas).  

Dessa forma, parece claro que o sistema acusatório de processo penal proíbe que o Poder Judiciário, de ofício, instaure e conduza procedimentos administrativos tendentes a encontrar os alicerces elementares para a perfeita edificação do juízo de imputação (autoria e materialidade), ainda que fundado em normas regimentais ou legais anteriores ou posteriores à Constituição da República de 5 de outubro de 1988.  

A autorizada doutrina diz que a regra constitucional prevista no art. 129, I, da Constituição, provocou a imediata revogação de diplomas legislativos editados sob a égide do regime anterior, que deferiam, excepcionalmente, a titularidade do poder de agir, mediante ação penal pública, entre outros, a magistrados e autoridades policias (Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, em Comentários à Constituição do Brasil; e Hugo Nigro Mazzili, em Introdução ao Ministério Público). Sempre lembrado é o escólio do Min. Celso de Mello, quando do julgamento do Inquérito 4.244 admoestou que “em consequência do monopólio constitucional do poder de agir outorgado ao Ministério Público em sede de infrações delituosas perseguíveis mediante ação penal de iniciativa pública, somente ao ‘Parquet’ - e ao ‘Parquet’ apenas - compete a prerrogativa de propor o arquivamento de quaisquer peças de informação ou de inquérito policial, sempre que inviável a formação da opinio delicti.”  

Idêntica conclusão foi alcançada pelo Min. Alexandre de Moraes quando do julgamento da ADI 4.693-MC/BA, quando asseverou que “[a] Constituição Brasileira de 1988 consagrou, em matéria de processo penal, o sistema acusatório, atribuindo a órgãos diferentes as funções de acusação e julgamento”, e “em virtude da titularidade exclusiva da ação penal pública pelo Ministério Público, expressamente prevista no citado art. 129, I, da Constituição Federal, o ordenamento jurídico não possibilita o arquivamento ‘ex officio’ de investigações criminais pela autoridade judicial”.  

Resumidamente, parece-nos inconstitucional a condução de investigação criminal preliminar por parte de um membro do Poder Judiciário. O preceito de ordem legal invocado, o Regimento Interno do STF, não prevalece quando analisado sob o prisma constitucional. É de ser atacado por ação de fiscalização abstrata de constitucionalidade de ato normativo do Poder Público, tecnicamente uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). O modelo acusatório de processo penal reserva ao magistrado a primada função de um juiz de garantias e não de um juiz inquisidor.  

Grande abraço a todos e uma excelente semana.

Fernando Cesar de Oliveira Faria - Formado em Direito pela UFMT e Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela FMP/RS