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Entrevista da Semana Segunda-feira, 09 de Março de 2020, 15:02 - A | A

09 de Março de 2020, 15h:02 - A | A

Entrevista da Semana / ATENDIMENTO ESPECIALIZADO

Defensora lamenta número de casos de violência doméstica: "Precisamos da Delegacia da Mulher com plantão de 24 horas"

Segundo Rosana Barros, a maioria dos casos de violência doméstica acontece fora do horário comercial

Lucielly Melo



“Só entende a violência contra a mulher aquela pessoa que de fato se capacita para entender”.

A fala é da defensora pública Rosana Leite Barros, que atua há quase 10 anos na defesa das mulheres vítimas de violência doméstica.

Em entrevista especial com o Ponto na Curva para abordar o mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, a defensora lamentou a falta de uma delegacia com plantão de 24 horas na Capital, já que a maioria dos casos de violência familiar acontece fora do horário comercial.

“Não são todas as pessoas [que entendem], não é qualquer servidor que vai sentar numa Delegacia de Polícia e entender a qualquer momento, não. Ele precisa entender o contexto que a mulher vive, todo machismo arraigado, todo patriarcalismo que sofremos para entender aquela violência que, para muitas pessoas, é mínima, mas é extrema. Quando uma mulher busca ajuda, a delegacia é o último lugar que ela gostaria de estar, mas naquele momento é a tábua de salvação dela”, frisou Barros.

A defensora ainda abordou temas relacionados à discriminação contra a mulher e os avanços e retrocessos no combate à violência doméstica e familiar.

LEIA ABAIXO A ENTREVISTA:

Ponto na Curva: Inicialmente, gostaria que falasse um pouco sobre sua carreira profissional?

Rosana Barros: Antes de ser defensora pública, já bacharel em Direito, fui assessora no Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Eu passei no concurso da Defensoria Pública em 2007. Desde 18 de fevereiro de 2011 atuo na defesa exclusivamente da mulher vítima de violência doméstica e de outras violências. O Núcleo de Defesa da Mulher (Nudem) de Cuiabá não faz só a defesa da mulher vítima da violência doméstica familiar, mas de toda e qualquer violência, como preconceito, discriminação que a mulher venha sofrer dentro e fora de casa.

Ponto na Curva: Mato Grosso já teve alguma mulher à frente da Defensoria Pública-Geral? Se sim, quem?

Rosana Barros: Teve. Foi a defensora pública-geral Karol Rotini, na época em que passei no concurso, entre 2006 e 2008. A Defensoria Pública tem 20 anos e tivemos apenas uma defensora pública-geral até hoje.

Ponto na Curva: A senhoria atribui essa falta de representatividade à quê? Discriminação? Política? Falta de interesse?

Rosana Barros: A Defensoria Pública é uma instituição lindíssima e, para mim, é uma das instituições mais democrática que temos no Brasil. Eu reputo que foi falta de vontade das mulheres em se candidatarem. Na Defensoria Pública de Mato Grosso temos um quadro maior do gênero masculino do que feminino. Acho não houve vontade mesmo das mulheres. Mas, discriminação ou preconceito dentro da Defensoria, eu não enxergo dessa forma. Estamos dentro de uma instituição extremamente democrática, para minha felicidade, porque somos os promotores e promotoras dos direitos humanos e então se nos promovemos os direitos humanos, nada mais legítimo e óbvio que tenha que sejamos mais democráticos.

Ponto na Curva: No mês de março, comemoramos o Dia Internacional da Mulher. O que essa data representa para o universo feminino? Há o que se comemorar?

Rosana Barros: Eu acho que é uma data de grande representatividade no universo feminino e, principalmente, para os feministas. Nós ganhamos muitos direitos e só conseguimos por conta da luta das mulheres feministas, aquelas que realmente deram a cara a tapa, muitas derramaram sangue para, hoje, termos os nossos direitos. A primeira, segunda, terceira, quarta ondas feministas que vivemos no Brasil foram importantíssimas para a capitulação de vários crimes, que fazem a proteção das mulheres e que punem os agressores e mostrando que o que faz com que a violência aconteça com as mulheres é a impunidade. Vivemos num país em que cadeias e presídios não ressocializam, não ressocializam quem nunca foi socializado. Acho que falta a socialização no Brasil. É claro que se falar em cadeia, presídio para a socialização é muito triste, mas quando se fala em violência contra a mulher, o agressor – e isso a sociedade pode perceber – ele só para de agredir mulheres, principalmente aqueles de delitos sexuais, quando encontra um freio e esse freio é o Poder Público. Quando vê que vai ser punido, ele para um pouquinho com essa vontade de agredir as mulheres. Tivemos sim muitos avanços, graças às ondas feministas, graças aos movimentos de mulheres. Hoje, acho que precisamos de um avanço cultural na sociedade. Temos leis importantíssimas que protegem as mulheres. Precisamos de mais leis ainda? Precisamos, porque para conseguir essa igualdade que procuramos, aquela igualdade que realmente é sentida, só através de leis afirmativas que venham garantir esses direitos para nós. Precisamos de muito mais e, principalmente do compromisso da sociedade, homens e mulheres agindo para que a violência, discriminação, preconceito sejam extirpados.

Alguns homens não estão aceitando essa independência da mulher de forma tranquila. Porque a mulher independente ela não aceita humilhação, constrangimento, agressão. Ela sai do ciclo de violência domestica familiar. O feminicídio aumentou muito por conta do término do relacionamento pelo homem não aceitar essa condição da mulher independente e acabar a assassinando

Ponto na Curva: Pode listar avanços e retrocessos? O que ainda precisa mudar nos dias atuais?

Rosana Barros: Em Mato Grosso, somos referência na aplicação da Lei Maria da Penha no que diz respeito ao sistema de Justiça. Quando se fala em Defensoria Pública, Poder Judiciário e Ministério Público, somos referência, aplicamos a lei integralmente. Mas, precisamos de um outro lado, para o cumprimento da lei em sua integralidade. A norma é essencialmente preventiva, que pensa na sociedade, por isso ela é uma das leis mais elogiadas no mundo no que diz respeito ao enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Não há, por exemplo, o cumprimento do artigo 8º, que prevê sobre a inclusão nos currículos escolares da não violência contra a mulher. Precisávamos dessa inclusão para que as crianças aprendessem desde a tenra idade sobre o que essa violência causa na sociedade, porque a violência não se restringe apenas àquela família, ela ultrapassa os muros da casa e atinge toda a sociedade. Precisamos que haja esse cumprimento da Lei Maria da Penha. Precisamos, por exemplo, que em Cuiabá tenha a Delegacia da Mulher com plantão de 24 horas, isso é primordial, isso é para ontem, anteontem, há muito tempo. Só entende a violência contra a mulher aquela pessoa que de fato se capacita para entender. Não são todas as pessoas [que entendem], não é qualquer servidor que vai sentar numa Delegacia de Polícia e entender a qualquer momento não. Ele precisa entender o contexto que a mulher vive, todo machismo arraigado, todo patriarcalismo que sofremos para entender aquela violência que para muitas pessoas é mínima, mas é extrema. Quando uma mulher busca ajuda, a delegacia é o último lugar que ela gostaria de estar, mas naquele momento é a tábua de salvação dela. Quando ela busca o Nudem é a tabua de salvação dela. Ela pensa ‘Essa pessoa que vai me atender, vai me trazer de volta a vida’. E se essa pessoa que vai atendê-la não atender de forma capacitada, não tiver a paciência e entendimento necessários ela não voltará e poderá ser morta. De fato, precisamos, de forma urgente, em Mato Grosso, começando por Cuiabá, da Delegacia da Mulher 24 horas. De 10 delitos que acontecem, seis são de violência contra a mulher. Esses delitos não ocorrem em horário comercial, a maioria deles acontecem fora do horário comercial, em feriados, finais de semana, depois das 19 horas, quando a Delegacia da Mulher já está fechada. Precisamos que o Poder Público invista na Delegacia da Mulher e entenda que essa violência ultrapassa os muros da nossa casa e atinge toda a sociedade. Quando atuava no interior do Estado, como defensora, eu visitava os presídios e fazia questão de conversar com aquelas pessoas e entender o porquê elas estavam naquela situação, cometendo delitos. A maioria delas contou que na infância viveu a violência doméstica familiar ou foi vítima da pior violência doméstica, que é a sexual. Essas pessoas desaguam na sociedade todo o trauma que  sofreram. Falta a compreensão do Poder Público nesse sentido. É isso que falta para todo mundo caminhar no mesmo sentido. Estamos caminhando muitas vezes no sentido contrário. A sociedade não entende, há muito julgamento da mulher quando a mídia mostra o que aconteceu com ela. Me lembro daquela moça que, em 2016, sofreu um estupro coletivo no Rio de Janeiro. Como aquela moça de 16 anos foi julgada pela sociedade, como tantas outras são julgadas! Então há a necessidade de uma compreensão, que só temos com capacitação permanente que está inserido na Lei Maria da Penha, mas que não vejo acontecendo. Se tivéssemos a Delegacia 24 horas, que é a porta de entrada, talvez teríamos uma vida diferente aqui em Cuiabá e o gênero feminino estaria muito melhor amparado e confiando na eficácia da norma.

Ponto na Curva: A senhora foi vítima de discriminação, inclusive, no âmbito do trabalho? Como vê isso?

Rosana Barros: Eu passei por algo que até seria engraçado se não fosse um sentimento machista que aconteceu dentro de uma audiência. Em Rosário Oeste, quando eu era defensora pública lá, tínhamos uma promotora que atuava, doutora Ana Carolina e a juíza Joanice Oliveira da Silva Gonçalves. Erámos três: defensora, promotora e a juíza. Tinha uma testemunha, um homem, que seria ouvido na audiência. Na hora que ele entrou e se deparou com três mulheres, sentou na cadeira e disse ‘Meu deus, estou enrolado, três mulheres!’. É um sentimento que a sociedade ainda tem. Será que ele se sentiria mais confortável com três homens para narrar o episódio que ele iria contar? Como se fôssemos incompetentes... Na hora ficamos sérias e, quando ele saiu, acabamos comentando sobre todo esse patriarcalismo, esse machismo que ainda vivemos na sociedade. Isso foi em 2009. Para mim foi horrível, ele se sentiu mal quando se encontrou só com mulheres.

Não precisamos ser vítimas para sentirmos a discriminação. A sororidade surgiu como uma palavra para nos sentirmos o que as outras mulheres sentem. Não preciso ser vítima de violência doméstica, não preciso ser vítima de violência sexual ou de preconceito, discriminação ou de qualquer ilegalidade para sentir aquela violência. Isso nós trabalhamos até com estudos e pesquisa para saber o porquê vem acontecendo. Não só as mulheres precisam sentir quando a outra é vítima, mas os homens se colocarem na pele dessas mulheres. Tem muitas pessoas do gênero feminino que já entendem o que é feminista, por exemplo, porque o feminismo não busca ser superior ao gênero masculino. As feministas buscam a igualdade material, tão somente isso que nós buscamos e nada mais.

Acho que falta muito essa consciência. Quando falam ‘Poxa, ela foi estuprada por causa da roupa que estava’. Meu Deus, vivemos num país democrático, então não podemos nem falar da roupa que a pessoa veste! É claro, tem lugares que tem as vestes talares, mas cada pessoa se veste da forma que acha que deve se vestir. Roupa não é convite para ninguém! Acho que falta respeito com o corpo da mulher. A mulher foi coisificada, objetificada por muitos anos. Quando eu era criança, assistia a TV e via as reportagens sobre o Carnaval e me lembro dos gringos que vinham para o Brasil e as perguntas eram as seguintes ‘O que você mais gosta no Carnaval?’ ‘Eu gosto das mulheres, vim para ver as mulheres, para me deliciar com as mulheres’. O que é isso? Quer dizer que temos mulatas tipo exportação no Brasil? Eles diziam ‘Eu gosto é das mulatas’, o termo mulata já é pejorativo. Tratar mulheres como objetos é como somos tratadas a vida inteira. Não é porque a mulher usa uma fantasia no Carnaval ela está pedindo para que algo de ruim aconteça. Temos festas importantíssimas no nosso calendário, como o próprio Carnaval, que podem muito bem acontecer sem os crimes que ainda acontecem.

Ponto na Curva: Os índices de violência contra mulher ainda são preocupantes. Como vê esses números e essa realidade?

Rosana Barros: O feminicídio para mim é o único delito que teve uma estatística maior nos últimos tempos. O feminicídio cometido dentro do ambiente familiar aumentou. Isso se deve, ao meu sentir, à independência da mulher. Alguns homens não estão aceitando essa independência da mulher de forma tranquila. Porque a mulher independente, não aceita humilhação, constrangimento, agressão. A mulher sai do ciclo de violência domestica familiar. O feminicídio aumentou muito por conta do término do relacionamento pelo homem não aceitar essa condição da mulher independente e acabar a assassinando.

Ponto na Curva: Qual o futuro da Rosana Barros, tem pretensão de ser defensora pública-geral? Existe um desejo pessoal?

Rosana Barros: Confesso que nunca pensei numa possibilidade de assumir a Defensoria Pública, pois gosto muito do lugar onde estou. Aqui no Núcleo de Defesa da Mulher é um trabalho lindíssimo, eu escrevo a respeito, estudo muito sobre isso e então acabo entendendo que meu lugar é onde estou. Nunca me surgiu essa pretensão, essa vontade.