facebook instagram
Cuiabá, 26 de Abril de 2025

Opinião Sexta-feira, 25 de Abril de 2025, 10:26 - A | A

Sexta-feira, 25 de Abril de 2025, 10h:26 - A | A

ILIETE YUNG

Regularização Fundiária x Política: o direito não pode ser moeda de troca

Não se trata, portanto, de concessão benevolente do gestor, mas de cumprimento de um dever institucional

A regularização fundiária é, por essência, uma política pública de Estado. Seu propósito é garantir dignidade, segurança jurídica e acesso à cidade para milhões de brasileiros que vivem em áreas informalmente ocupadas. No entanto, o que deveria ser um processo técnico, contínuo e fundamentado em lei, muitas vezes se torna refém da política — e, pior ainda, da politicagem.

Regularização como direito, não como favor.

A Constituição Federal de 1988 reconhece a moradia como direito social (art. 6º) e impõe ao Poder Público o dever de garantir a função social da propriedade urbana (art. 182, §2º). A Lei Federal nº 13.465/2017 veio regulamentar e dar instrumentos concretos para que esse direito se efetive por meio da REURB — Regularização Fundiária Urbana, em suas modalidades Social (REURB-S) e Específica (REURB-E).

Não se trata, portanto, de concessão benevolente do gestor, mas de cumprimento de um dever institucional.

O ciclo de descontinuidade: quando a política interrompe o processo.

A experiência mostra que, a cada troca de gestão, projetos de regularização fundiária já iniciados são paralisados, substituídos ou simplesmente ignorados por questões de conveniência política. Inúmeros processos técnicos, com pareceres jurídicos e estudos urbanísticos consolidados, acabam arquivados, pois foram iniciados em gestões anteriores.

Isso gera não só desperdício de recursos e tempo, mas principalmente frustração social. A comunidade vê a esperança de obter a tão sonhada escritura ser usada como ferramenta de manipulação política.

Títulos como marketing político: o uso eleitoral da propriedade.

Há ainda o agravante do uso dos títulos de propriedade como moeda de troca eleitoral. Entregas de escrituras são programadas em véspera de eleição. A regularização é adiada propositalmente para coincidir com períodos de campanha. Em vez de um processo contínuo e transparente, cria-se a falsa imagem de que o benefício foi um “presente” do gestor.

Esse tipo de prática fere os princípios da administração pública — especialmente os da impessoalidade, moralidade e eficiência — e fragiliza a confiança da população no Estado.

Cuiabá e a regularização rural: uma luz no caminho.

Em Cuiabá, a Lei Complementar nº 523/2023 trouxe um avanço ao reconhecer a possibilidade de regularizar áreas situadas fora do perímetro urbano. A norma permite que o chefe do Executivo crie núcleos de regularização rural por decreto, desde que preenchidos os requisitos legais e comprovada a ocupação consolidada.

Essa iniciativa, porém, também corre o risco de ser desvirtuada se não houver compromisso técnico na sua execução.

Caminhos para blindar a REURB da influência política.

Para que a regularização fundiária se mantenha como uma política pública séria, é preciso:

• Garantir a existência de núcleos técnicos permanentes, com equipe qualificada e independência técnica;

• Profissionalizar a atuação jurídica, com fundamentação sólida em cada fase do processo;

• Promover a transparência nas etapas, com envolvimento da comunidade e dos órgãos de controle;
• Evitar a personalização do processo, centrando a comunicação institucional no direito do cidadão, e não na figura do gestor.

Conclusão: segurança jurídica não se faz no palanque.

A regularização fundiária tem poder transformador. Mais do que formalizar a posse, ela garante cidadania, estabilidade social e desenvolvimento urbano sustentável. Mas, para que cada título represente um direito conquistado — e não um favor concedido —, é indispensável blindar o processo das interferências eleitoreiras.

É preciso que os gestores públicos compreendam que cumprir a lei não é ato de generosidade, mas de responsabilidade institucional. O cidadão não pode mais ser refém da troca de favores, nem ter sua dignidade manipulada por calendários eleitorais.

Regularizar é garantir o direito. E direito não se negocia — se assegura.

Iliete L. Yung – Advogada especialista em Direito Tributário, com ênfase em Direito Empresarial, e atuação nas áreas de Urbanismo e Assuntos Fundiários.