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Entrevista da Semana Terça-feira, 15 de Outubro de 2019, 08:43 - A | A

15 de Outubro de 2019, 08h:43 - A | A

Entrevista da Semana / JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

Lindote: o Estado tem que cumprir sua parte, deixar remédio à disposição de pacientes, mas nem tudo tem que ir à Justiça

O juiz José Lindote expressou sua preocupação com o crescente número de ações judiciais, já que até nas secretarias de Saúde adotam a cultura de demandar

Lucielly Melo



“O Estado tem que cumprir a parte dele, tem que comprar o remédio e deixar à disposição e a parte demandar quando for extremamente necessário, não para tudo que se precisa ir à Justiça. Assim inviabiliza a Vara, é muito processo, é preocupante”.

A fala é do juiz José Lindote, o titular da Vara Especializada da Saúde Pública de Mato Grosso, que começou a funcionar há 15 dias.

Em entrevista ao Ponto na Curva, o magistrado expressou sua preocupação com a judicialização da saúde. Ele esclareceu que até mesmo nas secretarias de Saúde adotam a cultura de demandar.

“Quando questionada, a Secretaria de Saúde fala que a judicialização tomou um ponto tão grande que não se tem mais recursos, porque os recursos mal dão para cumprir decisão judicial. O Poder Judiciário não está para bloquear dinheiro do Poder Executivo para comprar remédio e passar para parte”, disse Lindote.

Ainda durante a entrevista, Lindote admitiu que a Lei de Abuso de Autoridade vai inibir a atuação dos membros do Poder Judiciário, mas afirmou que não teme ser alvo de denúncia ou ação judicial por decretar bloqueio de recursos, quando achar necessário.

VEJA ABAIXO A ÍNTEGRA DA ENTREVISTA:

Ponto na Curva: Inicialmente gostaria que o senhor falasse um pouco da sua atuação no Poder Judiciário de Mato Grosso.

José Lindote: Entrei no Poder Judiciário em 1999. Passei pelas comarcas de Pedra Preta, Rondonópolis, Primavera do Leste, Cáceres e depois atuei como juiz auxiliar de trânsito especial de Cuiabá. Em 2005, vim removido para Várzea Grande, onde estou até hoje. Mas, já trabalhei como juiz auxiliar da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e auxiliei os ministros Francisco Falcão, Nancy Andrighi e João Otávio de Noronha. Assim como atuei como juiz auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso e dos desembargadores José Silvério e Rubens de Oliveira.

Ponto na Curva: Atualmente, o senhor assumiu a recém criada Vara Especializada da Saúde. Como se deu a criação dessa Vara, bem como sua nomeação?

José Lindote: A questão da saúde pública é uma demanda muito grande no Poder Judiciário e há muito tempo já vinha como objeto de estudo para especialização. O próprio CNJ vinha cobrando os tribunais para que estes especializassem suas varas. O Tribunal aqui, a princípio, criou varas especializadas em Cuiabá, Rondonópolis e Várzea Grande, depois resolveu fazer uma vara com competência estadual. Hoje, a vara recebe processos de todos os municípios de Mato Grosso. O Estado sendo parte, todas as ações necessariamente terão de ser distribuídas na 1ª Vara de Fazenda Pública de Várzea Grande. Naquelas ações em que o Estado for parte junto com qualquer Município, também [tramita] aqui. Isso inclui os Juizados Especiais e as Varas de Fazenda Pública. As ações de saúde que não tramitam na vara somente aquelas que são direcionadas exclusivamente contra o Município. Por exemplo, a parte quer solicitar um tratamento no município de Cuiabá. Se só é o Município de Cuiabá, tramita em Cuiabá. Se só Rondonópolis, tramita em Rondonópolis. Mas, se o Estado for parte, necessariamente atrai a competência para a 1ª Vara de Saúde Pública.

A vara continua sendo a 1ª Vara da Fazenda Pública, o que só alterou foi a competência dela. Ela tinha competência para feitos em que Município e o Estado fossem partes. Essa competência foi retirada e ficou exclusiva para as ações de saúde em que o Estado for parte ou as que ele for litisconsórcio com algum Município.

Não adianta dar a decisão e não saber se ela foi cumprida, o que aconteceu, porque não está sendo [obedecida]. Vamos trabalhar com prazo. O Estado tem um prazo, de acordo com a doença, para cumprir e isso vamos acompanhar. Se não cumprir, vamos tomar outras providências

Ponto na Curva: As ações que foram ajuizadas anteriormente irão para Vara ou continuarão onde tramitam hoje?

José Lindote: Há uma diferenciação. Alguns processos irão, por exemplo, aqueles que tem prestação continuada, que não se sabe por quanto tempo vai durar, como home care. Esse caso não se sabe quanto tempo a pessoa vai continuar recebendo o tratamento, pode ser um ano, dois anos ou a vida inteira. Agora, aqueles que, por exemplo, tratam sobre UTI, tem prestação limitada, a pessoa vai ser internada e receber a cirurgia e o processo vai acabar. Esses vão continuar na Vara onde estão tramitando. Os antigos só irão aqueles que denominamos como prestação continuada. A pessoa que toma o remédio contínuo, que vai tomar a vida inteira, ele [processo] vai para a Vara para evitar que tenham várias decisões diferentes para uma mesma situação.

Ponto na Curva: Embora a Vara seja na Comarca de Várzea Grande, nela tramitarão processo de todo o Estado de Mato Grosso, isso?

José Lindote: Todo o Estado. Vila Rica, Aripuanã, Alta Floresta, Comodoro... A princípio, poderia falar que vai atrapalhar o andamento, dificultar as partes, como que uma parte de Vila Rica, por exemplo, que é um município mais longe que tem, vai atuar? Olha só, os processos são eletrônicos, a parte que entra com uma ação contra o Estado, que geralmente, é uma cirurgia, um exame que vai realizar. As citações e intimações são feitas aqui. Então facilita, a pessoa entra com ação lá, aqui vamos fazer a citação, as intimações, cobrar o cumprimento da obrigação de prestação de serviço médico... Na verdade, tonará mais célere o processo e facilitará o cumprimento também.

 

Ponto na Curva: Recentemente foi criado o Núcleo de Apoio Judicial (NAJ) para auxiliar o titular da Vara de Saúde. Como ele funcionará e de que forma irá contribuir para a tomada de decisões corretas?

José Lindote: Foi firmado um protocolo, Termo de Cooperação entre o Estado e o Poder Judiciário. Dentro desse termo de cooperação está o NAJ, que vai atuar e tem outras situações. Nesse termo, adotamos as intimações, era um gargalo, dificuldade. A pessoa entrava com uma ação, tínhamos que dar uma decisão, que ia para o cartório expedir uma intimação, que passa para a Central de oficial de justiça, este que pessava dois dias correndo atrás de autoridades, secretários e da Central de Regulação para poder ser intimados. Agora, dentro dessa Central tem o visto eletrônico. Entrou nele, o juiz deu uma decisão, a intimação é uma nota eletrônica, é automática, não dura cinco minutos. Pelo termo do acordo, ele é obrigado abrir em determinados minutos. A intimação então é imediata. Já está funcionando. Por exemplo, deu uma liminar aqui, às vezes levava de 24 até 48 horas para intimar. No interior, tinha de expedir carta precatória para chegar aqui e o juiz daqui mandar o oficial cumprir. Hoje não. Mandamos a intimação por malote eletrônico e ele já presta informações por lá. A ida e a vinda de informações ficou muito rápido e isso facilita.

Não é porque a parte quer tomar aquele remédio que ela vai tomar. O remédio tem que ser efetivo

O maior problema da Vara de Fazenda Pública é o cumprimento. Dá a decisão e o Estado cumprir. O NAJ é um corpo de servidores terceirizados que virão trabalhar para o Poder Judiciário e irão acompanhar o cumprimento das decisões pelo Poder Executivo. Então essa é a função do NAJ. Não adianta dar a decisão e não saber se ela foi cumprida, o que aconteceu, porque não está sendo [obedecida]. Vamos trabalhar com prazo. O Estado tem um prazo, de acordo com a doença, para cumprir e isso vamos acompanhar. Se não cumprir, vamos tomar outras providências.

Ponto na Curva: O número de ações dessa natureza preocupa. O senhor atribui a que? Ausência de políticas públicas por parte do Poder Executivo?

José Lindote: Também. Na verdade, hoje todos os fatores. A judicialização tomou um norte tão grande que, se for lá na Secretaria de Saúde solicitar um procedimento, eles te dão uma certidão falando que o procedimento só é atendido mediante decisão judicial. O que resta ao cidadão? Procurar a Justiça. Quando questionada, a Secretaria de Saúde fala que a judicialização tomou um ponto tão grande que ela não tem mais recursos, porque os recursos mal dão para cumprir decisão judicial. O Poder Judiciário não está para bloquear dinheiro do Poder Executivo para comprar remédio e passar para parte. Estamos aqui para “senhora, esse remédio é necessário, é preciso, tem evidências científicas que vai dar resultado”. Não é porque a parte quer tomar aquele remédio que ela vai tomar. O remédio tem que ser efetivo. O SUS não tem ele, o remédio que o SUS disponibiliza o Estado não comprou? Ele tem que responsabilizar, tem que tomar as providências. Tem que chegar num ponto de ter esse ajuste. Do jeito que está funcionando hoje, vai chegar num ponto de desequilíbrio. A Vara vai contribuir, não quer dizer que as partes vão pleitear e vão ter o direito. Vão sim, mas vamos tentar para que cada um cumpra a sua parte. O Estado tem que cumprir a parte dele, tem que comprar o remédio e deixar à disposição e a parte demandar quando for extremamente necessário, não para tudo que se precisa ir à Justiça. Assim inviabiliza a vara, é muito processo, é preocupante.

Ponto na Curva: Há casos que mesmo com decisões liminares da Justiça, o paciente morre com a demora no cumprimento das decisões. O que fazer para que realmente sejam cumpridas as determinações judiciais?

José Lindote: Às vezes a pessoa está na UTI, o estado de saúde dela é precária e ela morre. Vemos que às vezes, quando cumpre a decisão e é internado na UTI, ela falece, às vezes quando demora para cumprir, também falece. Não pode atribuir à demora. A demora talvez pudesse evitar, sim. O que nós fazemos, o Poder Judiciário, quando o caso é urgente, dá a decisão e o remédio para o Estado dar cumprimento. As pessoas falecem antes da ordem judicial ser cumprida, aí aquela pessoa que não cumpriu pode ser responsabilizada por isso.

Ponto na Curva: Há muitas críticas no que tange a judicialização da saúde, inclusive porque muitas vezes se paga mais do que a Tabela do SUS. Redes privadas cobrariam acima do razoável ou do valor praticado no mercado. Há como o juiz evitar fraudes ou talvez até enriquecimento ilícito por parte das empresas dessa área?

José Lindote: O SUS paga um valor que, sabidamente de todos, quase na maioria dos procedimentos, encobre o custo, então nenhum estabelecimento privado vai fazer um procedimento com prejuízo, isso é normal. O que acontece hoje, realmente, os valores, os orçamentos que as partes trazem à Justiça são muito acima do que os hospitais cobram para fazer o mesmo procedimento pelo plano de saúde. Não podemos comparar os valores judicializados com o SUS, mas com plano de saúde, sim. Dentro dessa ótica, a medida em que os processos vão chegando, fazemos essa auditoria e valores abusivos não vão ser aceitos. Estamos preocupados com essa situação. Se vierem orçamentos com valores abusivos, não razoáveis, que o estabelecimento está cobrando, vamos procurar outro estabelecimento ou que o Estado faça o serviço, mas valores abusivos, com toda a certeza, não passarão.

O juiz, hoje, vai ficar certamente inibido de tomar algumas decisões e quem vai sofrer as consequências serão os cidadãos. Eu, particularmente, não tenho essa preocupação

Ponto na Curva: Há quem diga que a judicialização da saúde, ou seja, a concessão de decisões judiciais a favor de alguns em detrimento de outros afronta o princípio da universalização da saúde, ou seja, o direito de todo cidadão a uma saúde digna. O senhor concorda?

José Lindote: Com relação à judicialização da saúde, todos nós sabemos que o Estado tem um orçamento finito e a demanda da saúde é muito grande. É evidente que na medida em que se consegue liminares para tratar um número determinado de pessoas singularmente uma, duas três remédios caros é natural, é óbvio que vai faltar para os outros. Isso temos que ver, atuar de forma em que todos recebam o mesmo tratamento.

Ponto na Curva: O artigo 36 da Lei 13869/19, que tipifica como crime de abuso de autoridade “decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la” pode atingir as ações de saúde ou aplicação só em caso de execuções de dívidas?

José Lindote: A Lei de Abuso de Autoridade, criada para inibir a atuação de juízes, promotores e autoridades judiciais atinge a todos, indistintamente. Ela é muito subjetiva. Pode atingir o fato de bloquear um valor excessivo, como pelo fato de deixar bloquear. Então isso é muito prejudicial ao cidadão. O juiz, hoje, vai ficar certamente inibido de tomar algumas decisões e quem vai sofrer as consequências serão os cidadãos. Eu, particularmente, não tenho essa preocupação. Penso que se tiver que responder algum processo pelo o que eu fiz, vou responder, não vou deixar de fazer ou não por conta dessa Lei de Abuso de Autoridade. Mas, sem dúvida, ela é altamente prejudicial ao cidadão, na medida em que ela inibe o juiz de tomar decisões que as vezes precisa.