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Entrevista da Semana Segunda-feira, 28 de Outubro de 2019, 14:22 - A | A

28 de Outubro de 2019, 14h:22 - A | A

Entrevista da Semana / NA ÁREA MILITAR

Pioneiro no acordo de não persecução penal, promotor diz que negociação previne a impunidade

Segundo ele, um dos principais objetivos da não persecução penal é desobstruir a Justiça, já que os casos não sejam levados ao Judiciário

Lucielly Melo



Investigados por crimes de menor ou média potencialidade, que foram cometidos sem violência e tem pena inferior a quatro anos, podem não ser alvos de processos na Justiça se firmarem acordo de não persecução penal com o Ministério Público.

Parece novidade, mas o acordo foi criado em 2017, por meio da Resolução 181 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP),e desde então passou a ser adotado em todo o país.

Mas, foi em Mato Grosso que saiu a primeira negociação na área militar do Brasil. É que o promotor de Justiça, Allan Sidney do Ó de Souza, que atua na Promotoria da Justiça Militar, deixou de processar um oficial acusado de prevaricação e propôs que o mesmo cumprisse algumas obrigações para compensar o dano que causou.

Um dos principais objetivos da não persecução penal é desobstruir a Justiça, visto que os casos abordados no acordo não são levados ao Judiciário, que passará a dar mais atenção aos crimes mais graves. Por isso, ele acredita que a negociação combate a prescrição e a impunidade.

“A prescrição é, sim, uma inequívoca válvula de impunidade, porque não se consegue terminar o processo em tempo hábil e é um atestado de letargia do Estado que não conseguiu no tempo fixado na lei fazer aquela efetiva prestação jurisdicional”, disse Allan.

O promotor lembrou que, além dos requisitos citados, o investigado tem que confessar detalhadamente o crime que cometeu e ter bons antecedentes.

Allan deixou claro que no acordo de não persecução penal não há o que se falar em pena, mas sim em obrigações. O investigado negocia com o Ministério Público para cumprir prestação de serviços à comunidade ou pagar, em dinheiro, pelo dano causado.

Dependendo do caso, o acusado pode ser submetido a cumprir as duas obrigações, tanto prestação de serviços como a pecuniária.

“No acordo de não persecução penal são obrigações assumidas pelo chamado compromissário, que é o investigado. São elas: prestação de serviços à comunidade ou prestação pecuniária, que é pagamento de numerário, que buscamos as entidades ou relacionadas ao crime ou no caso aqui da Justiça Militar é o Proerd, que é um programa fantástico da Polícia Militar de prevenção e recuperação e combate às drogas. Mas, quando firmamos um acordo, o acusado, através de advogado, aceita aquelas obrigações, que são prestação de serviços à comunidade e/ou prestação pecuniária”, explicou.

Apesar de ser considerado um bom negócio para uns, o tratado não agradou alguns membros da Magistratura e da Advocacia. É que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) questionam a legalidade do acordo por meio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF).

O promotor está na torcida para que a Suprema Corte julgue não acate os argumentos e declare a constitucionalidade da norma.

LEIA ABAIXO A ENTREVISTA NA ÍNTEGRA:

Ponto na Curva: Inicialmente, faça um breve histórico da sua atuação funcional junto ao Ministério Público de Mato Grosso.

Allan Sidney do Ó: Ingressei no MPE no ano de 2000, após cerca de quatro a cinco anos, desculpa a expressão chula, de bunda na cadeira estudando, depois de formado, até brinco que não foi muito por mérito meu, mas pela benevolência de Deus. Realizei um sonho, embora sei que o Ministério Público tem suas falhas, como qualquer instituição, mas não me veria em uma outra profissão que não fosse a de promotor de Justiça, como a própria nomenclatura da função, somos promotores de Justiça, temos a atribuição constitucional de promover a Justiça. Interessante a carreira de magistratura não é juiz de justiça, né? É juiz de Direito. O promotor não é de Direito, é de Justiça. Já dizia Rui Barbosa, no início do século passada “Procure sempre fazer o direito e a Justiça, mas se em um caso concreto, o Direito e a Justiça se confrontarem, fiquem com a Justiça”. É uma das vocações que a Constituição Federal talhou o Ministério Público, diz no artigo 127 “o Ministério Público é uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Cheguei na Capital no ano de 2011, depois de 11 anos perambulando pelo Interior de Mato Grosso, minha primeira Comarca foi Juara, onde cumulava com a Comarca de Porto dos Gaúcho na ocasião, depois fomos para Rosário Oeste, Alta Floresta, Cáceres, Rondonópolis, a exceção de Juara e Porto dos Gaúchos, onde eu era "clínico geral", batia o escanteio e cabeceava, porque nessas chamadas de Entrância Inicial só há um promotor, então eu era o promotor criminal, cível, do meio ambiente, da família, do juizado especial, das mais variadas facetas da sociedade e quando vai para uma comarca onde há vários promotores, pode se especializar. Tirando as comarcas que trabalhei primeiro, passei a ser "criminoso”, da área criminal. Até a minha chegada à Capital, fui para o Tribunal do Júri de VG, lá fiz muito julgamentos de homicidas, de pessoas que acham no poder deturpado de Deus de tirar a vida de um semelhante, os crimes que ocupam a cúspide dos objetos jurídicos tutelados pelo julgador, que é a vida. Lá tive a grata e, ao mesmo tempo, triste sensação de abraçar famílias enlutadas, mães que tiveram filhos com a vida precocemente ceifada por pessoas que se esquecem da dor que fica na família quando tem um ente tombado. Depois fui para Maria da Penha, aqui em Cuiabá, e estou hoje na Promotoria de Justiça Miliar. Em maio deste ano, cansado um pouco de ser "criminoso", da área da promotoria criminal, pedi remoção para a 1ª Promotoria de Justiça Cível. Até o final do ano, continuaremos na função de promotor da Justiça Militar cumulando com a 1ª Promotoria Cível de Cuiabá, que afeta os direitos de Família, sucessões, mandados de segurança, recuperação judicial, falência...

Ponto na Curva: O senhor foi o pioneiro em Mato Grosso a celebrar acordo de não persecução penal?

Aliás, estamos tratando de uma criminalidade chamada de média potencialidade lesiva, diferente daqueles crimes que desgraçam mais o tecido social, que atentam mais com o tecido social. O acordo de não persecução penal não alberga, por exemplo, os crimes de corrupção, homicídio, latrocínio, estupros...

Allan Sidney do Ó: Fui o pioneiro em nível nacional na área militar.

Em Mato Grosso, me parece que outros colegas já o celebraram, salvo engano o colega Marcelo Vachiano no Direito Ambiental, mas na seara castrense militar, sim, foi o primeiro acordo de não persecução penal no Brasil.

Ponto na Curva: O que vem a ser esse acordo de não persecução penal?

Allan Sidney do Ó: É uma espécie de gênero da Justiça Restaurativa, de Justiça consensual, para uns Justiça negociada – termo no Brasil, onde a corrupção campeia, não soa com muitos bons olhos, mas se fala dentro da legalidade, dentro de uma celebração de acordo, portanto, dentro de uma negociação. Ele foi previsto numa resolução do Conselho Nacional do Ministério Público, órgão que tem a incumbência de fiscalizar a atuação administrativa de membros do Ministério Público. Lembrando que o membro do MP, o promotor de Justiça ou procurador da República, são agentes políticos, quer dizer, não devem satisfação a ninguém, a não ser as leis e a Constituição Federal. Não há uma relação hierarquizada, o último grau na minha carreira é um procurador de Justiça, este que não tem ascendência funcional sobre a minha atuação, ele não manda e nem pode interferir na minha atuação. Aliás, nenhuma autoridade pode interferir na atuação do promotor de justiça, desde o presidente da República ao presidente do Detran, já que o promotor goza da chamada independência funcional, como a própria Constituição prevê. Ao passo de ser uma grande responsabilidade, a independência funcional existe justamente para que o promotor de Justiça possa ter uma atuação livre sem influências externas, deve atuar de acordo com a convicção jurídica, claro que não é um tiro dado no escuro, existem as leis e a Constituição que devem reger a atuação, não somos legisladores. O CNMP, ao qual o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que são órgãos similares, o CNJ fiscaliza o Judiciário, ao passo que o CNMP é o órgão dos MPs do Brasil. Então o CNMP editou essa famigerada resolução 181/2017, que depois foi alterada, exatamente no art. 18, que prevê o chamado acordo de não persecução penal, pela resolução 183, quase um ano após a primeira edição, criando então o famoso acordo de não persecução penal.

Entidades como Associação Brasileira de Magistrados e a Ordem dos Advogados do Brasil bateram as portas do Supremo Tribunal Federal, insurgindo contra este instituto. Basicamente entre outros argumentos, o principal é que como pode um instituto dessa envergadura ter sido previsto, ter sido tratado e regulamentado, através de "uma mera" resolução do CNMP. Em síntese questionam a constitucionalidade da resolução, por entenderem que só poderia ser tratada mediante lei, no sentido formal que é editada pelo Parlamento. A Constituição Federal prevê que somente a União poderá editar lei sobre Direito Penal. A ação foi distribuída ao ministro Ricardo Lewandowski, que não concedeu a liminar e aguarda julgamento.

Ponto na Curva: A não persecução penal é uma espécie de acordo premiado?

Allan Sidney do Ó: Podemos chamar de gênero da Justiça Penal Negociada ou Justiça Restaurativa. Eles têm algo em comum, mas são institutos diferentes. No caso da colaboração premiada prevista na Lei de Organização Criminosa, o investigado/acusado senta com o Ministério Público, negocia através de sua condição, trazendo provas e documentos e, como o próprio nome diz, acaba delatando, colaborando com a Justiça no desmantelamento da organização criminosa. Ali tem os beneplácitos da lei, caso verdadeiramente aquele que infringiu a lei, caso efetivamente colabore demonstrando, não basta apenas alegação, ele deve comprovar o alegado, trazendo a participação de terceiros, dizer onde está o dinheiro público desviado, um exemplo mais simples, podendo gerar o perdão judicial ou a redução da pena. Por sua vez, o acordo de não persecução penal não estamos falando de organização criminosa, primeiro traço bem marcante de distinção. Aliás, estamos tratando de uma criminalidade chamada de média potencialidade lesiva, diferente daqueles crimes que desgraçam mais o tecido social, que atentam mais com o tecido social. O acordo de não persecução penal não alberga, por exemplo, os crimes de corrupção, homicídio, latrocínio, estupros... É bom deixar isso bem claro. Esses podem ser objeto de uma delação premiada. Os crimes objetos de um eventual acordo de não persecução penal são aqueles cuja a pena mínima não ultrapasse quatro anos. Temos por exemplo o latrocínio, a pena desse crime é de 20 a 30 anos, esse é absolutamente incondizente com o acordo, porque avilta de maneira patente o tecido social. O estupro de vulnerável, a pena é elevada não condizente com o acordo de não persecução penal. Esses, se cometidos dentro de uma organização criminosa, teoricamente são passíveis de colaboração premiada, acordo de não persecução penal, nunca. Os dois requisitos básicos entre outros do acordo é o crime cuja pena mínima não ultrapasse quatro anos e que seja crime cometido sem ameaça a pessoa, além do mais o agente ou investigado deve ser portador de bons antecedentes, ser primário. Temos um crime muito comum, que é um câncer, um cancro social. Esse final de semana estava de plantão, realizei audiências de custódias, nove audiências no sábado e sete no domingo. Aproximadamente 40 a 50% dos casos é de violência doméstica. A pena do crime de lesão corporal da violência doméstica – que é um câncer, essa mania que o homem tem de ainda achar que a mulher é posse e ele pode a qualquer momento aviltá-la, desprestigiá-la, diminuí-la – a pena é de três meses a três anos. Se for olhar apenas um dos requisitos da não persecução penal, de pena mínima inferior a quatro anos, daria. Mas, ele foi cometido com violência e grave ameaça à pessoa. É claro que para esse tipo de crime, que deve chamar a atenção da sociedade, um crime dessa envergadura, seria de fato incondizente entabular um acordo de não persecução penal. Para isso, já existe a Vara de Violência Doméstica. Aqui na Promotoria temos o Núcleo de Defesa da Mulher Vítima de Violência Doméstica para ter todo o atendimento psicossocial, por mais "simples" que for a ameaça suportada por aquela mulher, porque é um drama dentro de uma família, filhos e sogros estão vendo, então aquilo não poderia ser visto como crime de menor gravidade ou de media potencialidade. Não é razoável, não é crível, que demos um tratamento condizente como uma mera ou baixa potencialidade lesiva nesses casos.

Outro exemplo é o furto. A pena simples é de um a quatro anos, sendo possível então no caso de um furtador, desde que não seja cometido com grave ameaça e o furto só é furto porque não tem violência, essa é a distinção do furto do roubo. Ainda que o furto seja qualificado, que é pena de dois a oito anos, é um clássico exemplo de não persecução penal.

Imagine uma pessoa que faz do hábito ilícito um péssimo modo de viver e toda a vez que cometer um crime “ah vou sentar com o Ministério Público e fazer um acordo de não persecução penal”. O acordo não pode representar um estímulo a rescinda penal. Por essa razão, além dos demais requisitos, a pessoa investigada tem que ser ré primária e possuir bons antecedentes. Esses requisitos subjetivos são necessários para que encontre um fator a desestimulá-lo, para que não volte a rescindir. A resolução 181 do CNMP dispõe como critério a primariedade do agente a celebrar o acordo.

Imagine uma pessoa que faz do hábito ilícito um péssimo modo de viver e toda a vez que cometer um crime “ah vou sentar com o Ministério Público e fazer um acordo de não persecução penal”. O acordo não pode representar um estímulo a rescinda penal

Ponto na Curva: Como funciona na prática? Há penas a serem cumpridas no acordo?

Allan Sidney do Ó: É bom deixar bem claro que o investigado junto com o seu advogado, ele deve obrigatoriamente estar ladeado com um profissional da advocacia para a realização do acordo. Se não tiver condições de suportar um escritório de advocacia, um defensor público. Ele tem que ter alguém que tenha capacidade técnica para assisti-lo, não pode por conta própria, salvo se for advogado, mas sem um profissional da advocacia é inviável a confecção do acordo.

Quando sentamos e negociamos, não há o que falar de pena, em hipótese alguma. Só posso falar em pena depois que o Ministério Público oferece a denúncia, inicia-se um processo penal com todas as garantias legais, contraditório, ampla defesa, oitiva com testemunhas, sendo que quem vai julgar não é o promotor e nem o advogado, mas uma figura distante que é chamado juiz e ao final desse processo, há uma sentença, se ela o condenar, vai impingir uma pena. No acordo de não persecução penal são obrigações assumidas pelo chamado compromissário, que o investigado. São elas: prestação de serviços à comunidade ou prestação pecuniária, que é pagamento de numerário, que buscamos as entidades ou relacionadas ao crime ou no caso aqui da Justiça Militar é o Proerd, que é um programa fantástico da Polícia Militar de Prevenção e Recuperação e Combate às Drogas. Mas, quando firmamos um acordo e o acusado através de advogado aceita aquelas obrigações, que são prestação de serviços à comunidade e/ou prestação pecuniária.

Ponto na Curva: É possível fazer esse acordo se já houver uma ação penal em andamento ou encerrar um processo já instaurado?

Allan Sidney do Ó: O acordo só pode ser formulado antes da ação penal e daí toda a importância desse instituto, porque nós temos hoje nos escárnios dos armários do Judiciário uma cifra negra, números alarmantes de processos que apinham, assoberbam as varas criminais, as promotorias e as delegacias também, daí a grande necessidade de criarmos mecanismos a evitar esse índice alarmante que acomete as varas criminais do Poder Judiciário.

Ponto na Curva

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Promotor de Justiça Allan Sidney explica como funciona o acordo

Esse acordo de não persecução penal feito aqui na Promotoria envolvia um acusado, um policial militar. Era um inquérito que foi instaurado para apurar um crime de prevaricação, que é quando um funcionário público deixa de agir ou age em descumprimento a lei, para satisfazer seu sentimento ou interesse pessoal. A pena do crime de prevaricação é de seis meses a dois anos. Ele não é cometido por violência ou grave ameaça a pessoa, portanto preenche os requisitos. Era um policial que não tinha antecedentes, réu primário e então preenchia os requisitos. A resolução diminui ainda mais a possiblidade de acordo de não persecução penal na Justiça Militar, porque diz que não será celebrado acordo nos crimes militares, que afetem a hierarquia e a disciplina, que são os princípios que norteiam essa carreira. Este crime de prevaricação não está previsto somente no Código Penal da Justiça Militar, mas também Código Penal comum. Ora, se está previsto no Código Penal comum, temos a clara percepção de que é um crime que não atenta diretamente com a hierarquia e a disciplina, tanto é que um agente público não militar pode cometer o crime de prevaricação. Lá no Código Penal Militar tem um crime de desacato a ordem de superior. Um cabo desrespeita um subtenente, é um crime que não tem figura análoga no Código Penal comum, só no Militar. Esse crime, embora encaixa no requisito de pena inferior a quatro anos, atenta diretamente à hierarquia e a disciplina, logo, nesse caso, é inviável o acordo. Tem que se analisar os casos. Por exemplo, no Código Penal Militar prevê o crime de furto, em que o PM subtrai um bem de um civil que foi lá registar B.O, subtrai a carteira, é pena de um a quatro anos e é passível de acordo de não persecução penal.

Um dos objetivos do acordo é a reparação da vítima. No caso da prevaricação, não temos uma vítima direta, é determinada. Nesse caso, a lesão é difusa, a sociedade como um todo foi lesada. No caso de um crime de estelionato, de furto, que teve uma vítima direta, que teve o patrimônio lesado, nessas hipóteses para a celebração do acordo um dos requisitos é a reparação do dano à vítima. Temos que trazer a vítima para dentro do processo, lembrar dela. Às vezes, o cara entrou na casa do cidadão, dilapidou seu patrimônio, levou a TV, computador, celular, não acha a vítima, o processo corre, o furtador é condenado, a vítima pode perder o interesse e não acreditar na Justiça "não vai dar em nada", não sabe quem é o autor. Às vezes tem um processo, a vítima não fica sabendo, o cara é condenado, e ela? A vítima? Não vamos dar nenhuma satisfação para quem foi diretamente lesado? Então o acordo também tem essa vantagem de trazer a pessoa que foi diretamente lesada para o ceio da discussão. Quando o investigado não tem condições de pagar, já que ele vendeu os bens para comprar uma droga, mas ele está disposto, mostrou-se arrependido e quer ressarcir a vítima, quer mudar de vida, está devidamente arrependido, daí a vítima informa o valor do prejuízo. O investigado, negocia a dívida. Lembramos da vítima,  [o acordo] vê o caráter pedagógico, do caráter ressocializador, o quão vantajoso é não esquecer daquele que é ofendido direto com aquela lesão. Salvo é claro quando isso não dá pra acontecer. Por exemplo, alguém entra na casa e subtrai fotografias. Isso não tem valor econômico, mas tem valor sentimental inestimável.

Lembramos da vítima, [o acordo] vê o caráter pedagógico, do caráter ressocializador, o quão vantajoso é não esquecer daquele que é ofendido direto com aquela lesão

Ponto na Curva: O senhor citou o índice alarmante de processos que tramitam no Poder Judiciário. Acredita que haverá uma redução no número de ações judiciais?

Allan Sidney do Ó: Somos uma sociedade que comete crimes impressionantes. Tenho uma tabela de Boletins de Ocorrência registrados na Delegacia de Roubos e Furtos, de janeiro até setembro em Cuiabá, foram 8.696. Fazendo uma conta, por mês, em média dá 966, por dia dá 32 boletins de cidadãos que tiveram bens lapidados por larápios. Como vamos absolver esses números em processo, por mais que se deve, é claro, resguardar o contraditório e ampla defesa? Esse número é um processo burocrático e deve sê-lo, tem que ouvir testemunhas, a vítima, o acusado, o advogado, o oficial de Justiça tem que intimar as testemunhas, vai no bairro afastado, no local de trabalho e não acha, tem papel, tem perito... Isso é custoso para a sociedade. Muitas vezes acaba desembocando na odiosa impunidade através da prescrição. Pelo decurso do tempo acaba prescrito. Acaba o processo de abarrotamento. O mais importante: deixemos o processo judicial para aqueles crimes mais graves. Qual o grande problema? Ontem tomei ciência de quatro decisões do juiz da Vara Especializada da Justiça Militar de prescrição, tortura, corrupção e dois de concussão. Coisas importantíssimas, que deveriam haver uma resposta estatal para estes tipos de crimes, uma resposta meritória, quer dizer, se são inocentes, que sejam absolvidos, se são culpados, que sejam devidamente responsabilizados. O processo não pode ficar ad infinitum, aquela espada da Deusa Themis não pode ficar no pescoço do acusado eternamente. A prescrição é, sim, uma inequívoca válvula de impunidade, porque não consegue terminar o processo em tempo hábil e é um atestado de letargia do Estado que não conseguiu no tempo fixado na lei fazer aquela efetiva prestação jurisdicional. E claro, incita a sensação de impunidade, aqueles que cometeram os crimes que estão sendo acusados, não foram julgados nem inocentes e nem acusados, por conta da prescrição. A vantagem do acordo, fizemos no mês de setembro, aqueles crimes que poderíamos resolver mediante acordo, aqueles casos graves quando o juiz vai olhar na agenda para marcar audiência, por exemplo um crime de crime de tortura e olha a agenda e diz "Puxa, tem audiência aqui para ouvir um réu acusado de prevaricação”, então tem que remarcar a audiência de um crime mais grave para uma outra data, aquele crime de prevaricação, que poderíamos ter resolvido por acordo, desobstrui a pauta e permite com isso que o Judiciário faça a devida prestação jurisdicional naqueles casos mais graves.

Esses mecanismos de Justiça Restaurativa, de Justiça Consensual, estão ganhando os EUA, o plea bargain que é justamente a negociação que o promotor faz com o acusado, a diferença é que o promotor estadunidense pode negociar qualquer crime, de um furto a um homicídio. Ele senta com o acusado de homicídio e diz "Olha, ao invés de te dar a pena de morte, te dou a pena de prisão perpétua", porque lá não se brinca. Costumo dizer que aqui no Brasil temos um Direito Penal do mais frouxo, dos mais brandos do planeta Terra, nós brincamos -- e uma brincadeira de mal gosto -- com o Direito Penal. O Direito Penal tem esse nome porque se trata da sanção criminal, da pena. Eu brinco que aqui vigora o achismo penal tão evidente que falo que aqui não é o Direito Penal enquanto sanção criminal, mas pena de dó. Tenho dó do Direito Penal.

Quando estava em Várzea Grande no Tribunal do Júri, de 2012 para cá dos, 150 casos homicídios que fiz, nenhum homicida está preso. E a vítima? Essa está lá, a sete palmos de terra no chão, prisão perpetua, pena de morte. Não estou apregoando prisão perpetua e nem pena de morte no Brasil, aqui somos mais brandos, mas nem tanto ao mar, nem tanto ao céu. Não podemos brincar. Quantos júris já fiz e as mães das vítimas me ligaram e falaram que viram o acusado nas ruas. Tivemos agora recentemente, um brasileiro matou outra brasileira a facadas em Londres. Ele foi condenado a prisão perpétua. O crime foi em fevereiro. A sentença saiu em junho. A pena pode ser revista, mas só daqui a 27 anos. Estamos ou não brincando de Direito Penal? Estou falando de um país que vigora a guerra civil? Estamos falando de um país tido como um dos berços das garantias fundamentais, que é a Inglaterra. Lá se dá o devido tratamento ao Direito Penal. Homicídio não se pode brincar. Pois bem, esse brasileiro se tivesse cometido o mesmo crime aqui no país em fevereiro, dificilmente já teria sido julgado, esse julgamento aconteceria daqui três anos. Se fosse, uma pena de 12 a 30 anos, a média da pena tem dado 12 a 16 anos. Cuidado, ele só ficará cinco anos no máximo preso e garante o regime semiaberto. Mas, as cadeias não estão cheias? Estão. Não dizem que o Brasil é quinto país com população carcerária do mundo, mas ele é o quinto país com a maior população. Por isso temos o número de presos proporcional à população. Saltearíamos os olhos, se fossemos o vigésimo, quiséssemos que fosse, porque não teríamos criminalidade.

Ponto na Curva: E se caso o acusado não cumprir as obrigações?

O Direito Penal tem esse nome porque se trata da sanção criminal, da pena. Eu brinco que aqui vigora o achismo penal tão evidente que falo que aqui não é o Direito Penal enquanto sanção criminal, mas pena de dó. Tenho dó do Direito Penal

Allan Sidney do Ó: O investigado se torna inadimplente, comunicamos sobre as condições nas quais ele saiu, através do profissional da advocacia devidamente notificado e extinguimos o acordo. A partir daí, passa a responder o processo criminal. É importante lembrar que quando se faz o acordo, gravamos o investigado, que confessa pormenorizadamente o crime. Se ele não cumpre, posso oferecer a denúncia e já tenho a confissão dele. Lembrando que o acordo tem que ser encaminhado para homologação judicial.

Ponto na Curva: Como o senhor vê a Ação de Inconstitucionalidade ajuizada no STF, questionando a resolução?

Allan Sidney do Ó: Primeiro que a resolução é uma quebra de paradigma, toda a vez que saímos do “bê-á-bá” há uma certa resistência. Esses contra-argumentos com relação ao benefício, ao meu juízo não subsistem. Primeiro porque é um movimento mundial de aliviar o Poder Judiciário, buscando a Justiça Restaurativa para os crimes de baixa ou média potencialidade lesiva. Já sobre o segundo aspecto, que é o princípio da legalidade, por exemplo, as audiências de custódia elas existem com base na resolução nº 213 do CNJ. É lei? Não, e está aí trazendo maravilhas, e quando foi criada teve a mesma alegação. No início, promotores e até juízes torciam o nariz e ela está sendo uma realidade. Ademais, a previsão de regulamentar essas questões de caráter genérico e abstrato já foi decidido pelo STF. Existe uma resolução do CNJ, que disciplinou e regulamentou o tão odioso nepotismo. Mesmo status normativo do acordo da não persecução penal. Infringiria a reserva da jurisdição se impusesse pena, mas isso cabe é o Judiciário. No acordo é imposto obrigações.

Ponto na Curva: O senhor acredita que a ação vai ter sucesso?

Allan Sidney do Ó: Tenho minha torcida para que não. Creio que o Supremo vai julgar improcedente essas ações. Primeiro que o acordo já é realidade, o Brasil já tem feito inúmeros acordos. Então, olha as consequências de uma Ação de Inconstitucionalidade julgada procedente o que vai fazer com os processos, porque a prescrição está correndo. Fora isso, o próprio ministro Gilmar Mendes tem em vários julgamentos incitado a adotar medidas como na Alemanha, que vigora acordo parecido. Tendo em vista que ministros do STF em julgamentos outros já incidentalmente trataram do assunto, está mais do que na hora de o Brasil se modernizar. Não tenho nenhum apego a resolução, quisera que o Parlamento acordasse e editasse uma lei. Mas, o Parlamento continua moroso, cochilando e o CNMP, ao meu ver, em um grande avanço editou a resolução.