Lucielly Melo
Recentemente sancionada, a Lei 13.964, conhecida como “Pacote Anticrime”, criou a figura do juiz de garantias, magistrado responsável só para acompanhar os trabalhos investigativos na área criminal.
A novidade é vista com “bons olhos” pelo juiz Tiago Abreu, presidente Associação Mato-grossense de Magistrados (AMAM).
Em entrevista ao Ponto na Curva, o magistrado falou que a norma trará uma mudança expressiva no Direito Penal brasileiro. No entanto, ainda não se sabe como será aplicada, já que afetará a estrutura do Poder Judiciário, uma vez que os impactos orçamentários não foram debatidos pelo Congresso.
“Na minha expectativa, acho que é positiva a função do juiz de garantias. Ela dá ainda mais concreção ao que foi adotado no nosso Código de Processo Penal. Vejo com bons olhos, mas precisamos ter estrutura para que a lei seja efetivamente colocada em prática”.
O representante da AMAM ainda falou sobre a Lei de Abuso de Autoridade e a Resolução do CNJ, que trata como o magistrado deve se comportar nas redes sociais. As duas normas são consideradas como “desnecessárias” por Abreu. Isso porque há a Lei Orgânica da Magistratura (Loman) e as corregedorias para fiscalizarem e punirem as autoridades, em caso de condutas excessivas.
"A seara do Direito Penal foi feita para atuar em situações extremas, não podemos usar a seara criminal para tentar consertar condutas sociais, não vejo dessa forma, mas está aí a lei e vamos avaliar como vai se comportar", disse.
LEIA ABAIXO A ENTREVISTA NA ÍNTEGRA:
Ponto na Curva: Inicialmente gostaria que fizesse uma introdução sobre sua trajetória como juiz e como se tornou presidente da AMAM.
Tiago Abreu: Iniciei minha carreira em Mato Grosso no início de 2004, quando fui para Peixoto de Azevedo. Depois atuei na comarca de Matupá e continuei respondendo por Peixoto de Azevedo durante 8 anos. Também fui para Sorriso, onde fiquei mais ou menos um ano também respondendo por Nova Ubiratã. Posteriormente, fui promovido para Sinop e depois vim para Cuiabá exercer a presidência da Associação.
Ponto na Curva: Hoje o senhor continua atuando como magistrado?
Tiago Abreu: Sim, no Quarto Juizado Cível de Cuiabá.
Ponto na Curva: Qual o principal objetivo/finalidade da Associação em si?
Tiago Abreu: A Associação tem dois objetivos fundamentais: primeiro é fazer a defesa dos direitos e prerrogativas dos magistrados associados a ela; o segundo é fazer uma interlocução do Judiciário com a sociedade, aproximando, esclarecendo e apresentando o papel, as atividades, dialogando o porquê o Judiciário é importante, como funciona e tudo mais.
Ponto na Curva: Recém sancionada, a Lei 13.964, intitulada “Pacote Anticrime”, criou a figura do juiz das garantias. O senhor acredita que a norma terá impacto na atuação dos magistrados?
Não vejo como dar a estruturação necessária para o funcionamento do juiz de garantias sem que haja mais juízes, sem que haja uma secretaria e servidores disponíveis para fazer todo esse serviço de maneira excelente
Tiago Abreu: Vai ter com certeza uma mudança bastante expressiva na seara criminal no Brasil. A figura do juiz de garantias estabelece um magistrado exclusivo para cuidar da fase pré-processual até o recebimento da denúncia, então é algo que não temos, nunca tivemos salvo um ou outro caso aí, por exemplo, em São Paulo, onde existe uma Central de Inquéritos que funciona há alguns anos, mas não nesse modelo do juiz de garantias. O magistrado que está ali [Central de Inquéritos] não tem todas as atribuições que um juiz de garantias vai ter, mas algo que a gente pode utilizar como parâmetro, não de maneira completa. Na minha expectativa, acho que é positiva a função do juiz de garantias. Ela dá ainda mais concreção ao foi adotado no nosso Código de Processo Penal. Vejo com bons olhos, mas precisamos ter estrutura para que a lei seja efetivamente colocada em prática.
Ponto na Curva: Hoje, fala-se que há um déficit de juízes em Mato Grosso. Como seria a estrutura, o impacto financeiro? Já tem se discutido isso?
Tiago Abreu: Como todos nós fomos pegos de surpresa, porque, na verdade, esse projeto anticrime foi remetido ao Congresso pelo Ministério da Justiça e nele não estava contemplado o juiz de garantias. Não houve um debate da parte do Congresso com as entidades de classe, para que houvesse um aprofundamento maior dessas peculiaridades que teriam que ser enfrentadas para que ele [projeto] fosse colocado em prática. Essa é a maior crítica que tenho feito. Acho que poderia ter sido feito um debate maior sobre isso, mas tudo bem, a lei foi sancionada e agora temos que cumpri-la. Esse estudo de impacto orçamentário, que vai demandar mais juízes, ainda não foi feito. O ministro Dias Toffoli, presidente do STF [Supremo Tribunal Federal] e CNJ [Conselho Nacional de Justiça], criou uma comissão após a sanção da lei, deu o prazo de 15 dias e só depois o CNJ vai apresentar para os Tribunais de Justiça uma recomendação, algo que nos norteie, que ajude os presidentes dos tribunais, as associações a atuarem nessa estruturação. O pedido da AMB [Associação dos Magistrados Brasileiros] é para dilação desse prazo, porque lei entra em vigor agora dia 23 e obviamente que é impossível dar a concretude nesta data. Nas comarcas de entrância final, como Cuiabá, Várzea Grande, Rondonópolis e Sinop, é mais fácil porque tem mais juízes, ainda se fizer um arranjo, é possível. Mas, nas comarcas de primeira entrância ou nas de segundas que têm um só ou dois juízes, como fazer nessa situação? É algo que vai ter que ser bem estudado, bem pensado. O impacto orçamentário disso ainda não foi feito.
Ponto na Curva: Qual o número de déficit de magistrados no Estado hoje?
Tiago Abreu: Cerca de 30 magistrados.
Ponto na Curva: Tem algum estudo de quantos juízes demandariam para atender essa determinação?
Tiago Abreu: Não, ainda não temos.
Ponto na Curva: O senhor acredita que a AMB vai acionar o STF para questionar a norma?
Tiago Abreu: A AMB já entrou com uma ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade] no STF e está concluso, salvo engano, para o ministro Luiz Fux, que é o relator dos processos acerca do juiz de garantias. Então estamos aguardando essa decisão do Supremo.
Presidente da Amam, Tiago Abreu, defende figura do juiz de garantias
Ponto na Curva: Recentemente, o presidente do STF defendeu a figura do juiz de garantias, que é importante e que é uma questão só de remodelar o sistema, por isso não teria muito impacto financeiro. O senhor concorda?
Tiago Abreu: O ministro Dias Toffoli pode ser que tenha dados, ideias, que essa comissão está sendo feita e nós não sabemos, não temos esses elementos. A grosso modo é bastante objetiva, não vejo como dar a estruturação necessária para o funcionamento do juiz de garantias sem que haja mais juízes, sem que haja uma secretaria e servidores disponíveis para fazer todo esse serviço de maneira excelente. Não estamos falando de fazer uma coisa capenga, de qualquer jeito ou fazer a implantação pela metade, pensando em fazer algo que seja 100% integral, algo que funcione, que não fique no papel.
Ponto na Curva: Para se ter mais juízes e servidores há custos. O fato é que então os TJs devem aguardar esse estudo do CNJ para entender que rumo vão tomar?
Tiago Abreu: Exatamente. O que os tribunais e as associações de classe tem feito é aguardar a conclusão dessa comissão que foi criada pelo CNJ para a partir do momento que o CNJ apresentar uma sugestão, ideia ou norte começarmos a discutir a maneira de estruturação do juiz de garantias.
Ponto na Curva: Então o senhor considera importante o papel de juiz de garantias na seara criminal?
Tiago Abreu: É, não temos elementos para dizer que não será um avanço, se pensarmos que teremos mais um magistrado cuidando de uma fase específica, até pela obviedade, entendemos que vai ser melhor, que tudo leva a crer que vai dar mais garantia, mais celeridade para o jurisdicionado.
Ponto na Curva: Essa ADI da AMB no STF é para pedir mais tempo ou para revogar a lei?
Tiago Abreu: Ela trata dois assuntos principais, o prazo e a questão financeira, que não teria condições. Tem um terceiro argumento que se discute que é um possível vício de iniciativa, se caberia ou não ao Poder Legislativo de legislar, gerando impacto no Poder Judiciário ou se caberia isso unicamente ao Judiciário.
Ponto na Curva: Tem a possibilidade do STF derrubar a norma?
Tiago Abreu: Existe a possibilidade. Existem três ações, da Ajufe [Associação dos Juízes Federais do Brasil], da AMB e de alguns parlamentares contra essa figura do juiz de garantias, discutindo a constitucionalidade da lei e os impactos orçamentários dela.
O magistrado que der uma decisão mais severa, como um bloqueio ou prisão imediata por conta de um fato, pode se tornar um criminoso por estar tentando proteger a sociedade
Ponto na Curva: Sobre a Lei de Abuso de Autoridade, quais os pontos que considera mais controversos ou com uma forma de repressão ao Judiciário, se assim entender?
Tiago Abreu: Foi um excesso do Parlamento de recrudescer a Lei de Abuso de Autoridade, porque ela já existia. Nós, quanto entidade e as demais entidades de classe, ninguém era contra fazer ajustes pontuais, de aperfeiçoar, isso ninguém é contra. Agora, da forma como foi legislado, entendo que criminalizou a atividade-fim da magistratura, por exemplo. Temos um Código de Ética, a nossa Loman [Lei Orgânica da Magistratura), embora seja de 1979, é uma lei extremamente severa com relação a conduta do magistrado. As Corregedorias, tanto a nível estadual quanto a nível nacional, que é a do CNJ, elas punem e fiscalizam os magistrados, então já sofremos punições administrativas extremamente severas e que, na minha opinião, não tinha necessidade de criminalizar atitudes que já estavam vedadas pelo nosso Código de Ética. Isso intimida, de alguma forma, os atores que atuam no sistema criminal, não só os magistrados, como os policiais, os promotores, os delegados e pode gerar, sim, uma situação até inversa do que a sociedade ou do que se pretendeu, porque o que se pretendeu foi coibir o abuso. Talvez aumente o abuso por conta da inibição das pessoas que são responsáveis pelo sistema de justiça em atuar, pois um policial que algemar uma pessoa, ele, ao invés de estar coibindo um crime, pode se tornar o criminoso. O magistrado que der uma decisão mais severa, como um bloqueio ou prisão imediata por conta de um fato, pode se tornar um criminoso por estar tentando proteger a sociedade, talvez a medida naquele momento era a única possível. Quantas vezes policiais se deparam com uma briga entre duas pessoas, a contenção, o algemar, o recolher é uma maneira de garantir a vida daquela pessoa, só que talvez quem sabe ele [autoridade] vai estar cometendo um crime em fazer isso agora, dependendo da situação de como vir ao Judiciário. Não sei se vai gerar o efeito como a lei queria que gerasse. O argumento que foi dado era utilizando os fatos pontuais, existe pontualmente um excesso de um policial, de um delegado, promotor, juiz? Existe, tanto que esses casos pontuais são punidos pela Corregedoria. Temos inúmeros casos de policiais, delegados, magistrados que foram afastados. Não vejo que seria esse o caminho, de criminalização. A seara do Direito Penal foi feita para atuar em situações extremas, não podemos usar a seara criminal para tentar consertar condutas sociais, não vejo dessa forma, mas está aí a lei e vamos avaliar como vai se comportar.
Ponto na Curva: A AMB já se manifestou e vai acionar também ao STF contra a lei?
Tiago Abreu: Já ajuizou uma ADI questionando a Lei de Abuso de Autoridade, vários artigos que consideramos como inconstitucionais.
Ponto na Curva: A expectativa é que haja alguma alteração?
Tiago Abreu: A nossa esperança é que naqueles vícios, que estão claros que são inconstitucionais, o STF declare dessa forma e que não haja a aplicabilidade da lei, mas hoje está em vigor da forma em que foi sancionada.
Ponto na Curva: Como entidade, a Amam já chegou a se reunir com juízes?
Tiago Abreu: Fizemos na Assembleia Legislativa atos contra a Lei antes dela ter sido aprovada e agora, posterior a aprovação dela, temos a própria AMB e algumas entidades de classe orientado os colegas que pedem na medida em que é possível de como se comportar, embora seja algo muito novo, não sabemos como a jurisprudência, isso vai se comportar no dia a dia.
Ponto na Curva: A Amam se manifestou contra a criação de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que prevê a regulamentação do uso de redes sociais por magistrados, no entanto, esta acabou sendo criada. O senhor vê como supressão ao direito de livre manifestação de opinião ou censura prévia à atuação dos magistrados?
Tiago Abreu: Temos a Loman e o Código de Ética bastantes severos, vejo como desnecessária essa regulamentação, embora ela tenha razão de ter sido editada porque existiram excessos. Houve manifestações de magistrados com bandeira de político, defendendo isso, se manifestando explicitamente nas redes sociais, através do Instagram, Facebook, WhatsApp, grupos.... Óbvio que isso não é aprovado e não deve ser recomendado na conduta do magistrado, que está julgando a sociedade e deve se manter distante. Ele pode ter suas convicções políticas, mas tem que ter cautela em expor isso, porque ele eventualmente julga. Imagino que a resolução veio regulamentar isso, mas se utilizando muito mais de fatos pontuais, do que de uma regra. Isso não é a conduta da maioria dos magistrados do Brasil, são poucos que se excedem. Não acredito que seria necessária uma resolução para tratar desse assunto, embora eu a respeite e acho que tem que de fato cautela e cumprir, mas foi excessiva e desnecessária, uma vez que própria Lomam e nosso Código de Ética são suficientes para coibir qualquer abuso por parte dos magistrados.
Vejo a nossa magistratura, mesmo com todas as mazelas, dificuldades e necessidades de melhorar, estamos ainda num patamar bastante elevado se formos comparar com as demais
Como magistrado, já somos limitados. Quando o cidadão escolheu entrar na carreira da magistratura, ele sabe que ali ele tem várias restrições, que são inerentes ao próprio cargo. Eu não consigo traçar um paralelo amplo nesse sentido, porque nós já somos diferentes, temos tanto responsabilidades e compromissos diferentes de um cidadão comum. Penso que esse argumento não é o suficiente para dizer que a regulamentação está equivocada, porque o fato de ter uma regulamentação não quer dizer que eu não seja livre para me manifestar, só tem que ter parâmetros para que isso seja exteriorizado, vejo a desnecessidade pois já temos um Código de Ética severo, mas respeito e entendo que possa existir casos excessivos que precisam ser tratados, só não acho que seria necessário esse instrumento, mas vamos ter que cumprir ela.
Ponto na Curva: Para finalizar, como representante dos magistrados como avalia o Judiciário de Mato Grosso? Hoje, qual o principal gargalo e por outro lado, qual principal avanço?
Tiago Abreu: Sem dúvidas, o maior gargalo do Judiciário é o número de demandas, de processos em tramitação. Agora, o que vejo é que o Judiciário tem avançado em Mato Grosso e muito, como o PJe [Processo Judicial Eletrônico], que tem vindo de várias gestões e o desembargador Carlos Alberto, acredito que ele conclua em 100% das comarcas. A transformação do processo físico para o eletrônico já vai dar um avanço enorme, tanto na celeridade da tramitação interna dele, como também no processamento e arquivamento dele, porque antes demorava e hoje tudo é mais rápido. O segundo ponto é que vamos ter como ganho a redução de servidores para mexer nesse processo. Onde precisamos de três, quatro servidores, hoje não precisa mais de ninguém juntando folha, pois tudo está eletrônico, isso melhora os espaços físicos e melhora a celeridade do processo. A tendência é caminharmos para um lugar muito mais seguro. A Administração do TJ tem feito um trabalho magnífico no sentido de valorização, tanto da magistratura quando dos servidores. Eu, enquanto presidente da associação, tenho encontrado guarida em praticamente todos os nossos pleitos e isso demonstra o respeito da Administração com a magistratura. Espero que nesse último ano do nosso mandato possamos concluir projetos que estão pendentes para melhorar ainda mais a condição de trabalho dos magistrados de Mato Grosso.
Ponto na Curva: O senhor também vê o Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU) como um avanço?
Tiago Abreu: O SEEU revoluciona o sistema de execução penal do Brasil e nós daqui de Mato Grosso estamos saindo na frente, como projeto-piloto, então estamos na vanguarda de várias coisas. A vara recém-criada da Saúde Pública é um grande avanço. Existe ainda uma resistência, porque tudo que é novo tem resistência, mas acredito que vai dar mais segurança, padronização nas decisões e vai dar mais celeridade, pois vamos ter dois magistrados cuidando disso 24 horas por dia somente nisso. A tendência é que seja muito mais eficiente do que já vem sendo. Acho que é um ganho para o Judiciário a criação dessa vara. Vejo a nossa magistratura, mesmo com todas as mazelas, dificuldades e necessidades de melhorar, estamos ainda num patamar bastante elevado se formos comparar com as demais, não é à toa que ganhamos o selo de ouro na última avaliação do CNJ. Isso demonstra que o trabalho que vem sendo desenvolvido é positivo e isso vem vindo ao longo dos anos, já é uma cultura do TJ. Creio que vamos prestar um serviço melhor, com mais qualidade, mais eficiência e com muito mais celeridade à sociedade de Mato Grosso.