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Entrevista da Semana Segunda-feira, 02 de Março de 2020, 14:12 - A | A

02 de Março de 2020, 14h:12 - A | A

Entrevista da Semana / ESPECIAL MÊS DA MULHER

Vice-presidente da OAB-MT acredita que ações afirmativas incentivam a mulher a ter voz no Brasil

Para Gisela, que atua na advocacia há mais de 19 anos, as ações afirmativas, muitas vezes vistas com maus olhos – como no caso de cotas –, devem ser promovidas para que haja igualdade

Lucielly Melo



Em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, o Ponto na Curva fará neste mês de março uma série de entrevistas voltadas para a mulher. 

A primeira entrevistada é a vice-presidente da Ordem dos Advogados em Mato Grosso, Gisela Alves Cardoso, que falou sobre os desafios e dificuldades da representatividade feminina num ambiente dominado por homens.

“Na realidade, a OAB tem um ambiente historicamente machista, formado só por homens e trabalhamos muito para que esse contexto seja mudado. Estamos vendo, percebendo a evolução. Aqui em Mato Grosso, por exemplo, temos um conselho feminino muito ativo, participativo. Temos mulheres presidentes das principais comissões temáticas”, disse.

Para Gisela, que atua na advocacia há mais de 19 anos, as ações afirmativas, muitas vezes vistas com maus olhos – como no caso de cotas –, devem ser promovidas para que haja igualdade.

“O que mais se ouve falar, quando o assunto é cotas, “Vocês mulheres não precisam disso, vocês têm competência". Sobre a competência e capacidade, eu não tenho dúvida de não precisamos disso [cotas]. Mas, temos um contexto histórico machista, patriarcal, isso não se muda sem ações afirmativas”.

Por outro lado, ela afirmou que as mulheres também precisam demonstrar interesse e irem à luta para serem inseridas nos lugares que, hoje, são predominados pelas figuras masculinas.

VEJA ABAIXO A ENTREVISTA NA ÍNTEGRA:

Ponto na Curva: Inicialmente, gostaria que falasse um pouco sobre sua carreira na advocacia até chegar à vice-presidência da OAB em Mato Grosso?

Gisela Cardoso: Me formei em 2001. Na época, eu não tinha um histórico na família de advogados, morava no interior e vim para Cuiabá para fazer a faculdade de Direito. Era uma pretensão de criança, sempre me imaginei advogada. Aqui em Cuiabá, fazendo a faculdade, não cheguei a trabalhar em escritórios, trabalhava em bancos, precisava me manter, pagar a faculdade. Terminando o curso, pude buscar o exercício efetivo da advocacia. Fui trabalhar, em primeiro momento, num escritório que prestava serviços para um banco e comecei com todas as dificuldades que a maioria dos jovens advogados encontram. Uma jovem advogada, recém-formada, sem um amparo financeiro de família, sem um escritório que pudesse ter começado a carreira. Foi muito difícil esse começo para mim, mas a advocacia era um exercício que queria fazer. A partir daí, consegui um espaço num escritório, depois fui para um outro maior e acabei montando meu escritório em 2010. Hoje, ele completa 10 anos. Com todas as dificuldades, venho desenvolvendo a advocacia com muito amor e dedicação. Junto à OAB, as coisas foram acontecendo naturalmente e isso é o que acho mais interessante. Não obstante todas as barreiras encontradas, a partir do momento em que se dedica e busca aquilo que quer, se consegue ultrapassar. Na OAB, primeiramente fui convidada para participar do Tribunal de Ética e Disciplina (TED). Fui relatora do TED por duas gestões e participei também das comissões. Quando às eleições em 2016/2018, fui convidada pelo presidente Leonardo Campos para compor a chapa diretora. A partir daí eu mergulhei de cabeça. A política de Ordem nos traz muitos desafios. Lutar, trabalhar por um bem comum, por aquela categoria. Nós que prestamos serviços para a Ordem não somos remunerados, então é realmente em benefício da categoria. Nas eleições passadas, veio a proposta do Leonardo Campos vir a reeleição e então o convite para que ser vice-presidente, em razão do trabalho desenvolvido. Me senti muito feliz, muito honrada pelo convite, aceitei e aqui estou, buscando fazer o melhor para exercer a função que me foi confiada. Temos uma diretoria muito homogênea, muito unida, onde todos os assuntos são ali discutidos e resolvidos – e isso me dá uma tranquilidade maior para trabalhar.

Ponto na Curva: O cargo de vice muitas vezes é tido meramente como uma figura, concorda? Como se dá sua atuação como vice-presidente da OAB em Mato Grosso e a importância de uma mulher na diretoria da entidade que representa todos os advogados no Estado?

Gisela Cardoso: Isso é fato no cotidiano, o vice representa uma figura apenas para compor cota, por exemplo, quando fala de mulher ainda "ah, mais eu tenho uma vice mulher que é para compor a cota e ter uma figura lá". Aqui, nesta gestão, garanto, que há efetiva participação feminina, não só eu como vice, mas de todas as conselheiras, presidentes de comissão e as mulheres que atuam na OAB. A advogada na OAB Mato Grosso tem voz, ela tem vez, ela participa de todos os atos decisórios, inclusive. Enquanto vice-presidente, tenho toda autonomia para exercer minha função com liberdade. É claro que temos uma diretoria que discute, que toma as decisões juntos, mas em nenhum momento fui repelida ou barrada de fazer aquilo que entendi correto ou necessário por ser considerada, primeiro, a mulher da cota e segundo, a figura do vice. O nosso presidente Leonardo Campos tem essa característica de atribuir funções e permitir que aqueles que queiram efetivamente trabalhar, exerçam a sua atividade com autonomia, com liberdade.

Ponto na Curva: Seja participando de eventos, palestrando, defendendo tese em algum lugar... Como se dá essa atuação?

Gisela Cardoso: Também representando a OAB enquanto instituição nos órgãos públicos, nas palestras. Estarei em Fortaleza, na Conferência Nacional da Mulher Advogada, vou presidir um painel bastante importante, estarei representando Mato Grosso, o que me deixa muito feliz. Hoje, sou também a coordenadora-geral das comissões da OAB, então estou diretamente ligada com todas as comissões. A OAB tem mais de 50 comissões temáticas. Todas as atividades desenvolvidas pelas comissões passam por mim. Trabalho junto às subseções, elas demandam muito a diretoria de forma ampla e também sou muito demandada por elas. O trabalho é intenso e contínuo em todas as esferas. Na ESA [Escola Superior de Advocacia] estamos preparando a Conferência Estadual da OAB, que será em setembro. As atividades são inúmeras e em todas tem a participação efetiva, com voz, vez e poder decisório.

Ponto na Curva: Mato Grosso teve apenas uma mulher na presidência da entidade, atribui isso a quê? Discriminação, falta de vontade, política?

Gisela Cardoso: Isso, Mato Grosso teve só a desembargadora Maria Helena Póvoas, na OAB Nacional nenhuma. Hoje, no Brasil, em todas as secções não há nenhuma presidente. Na gestão passada havia uma, Fernanda Marinela, no Alagoas. O Conselho Federal tem cinco diretores, nenhuma mulher. Na realidade, a OAB tem um ambiente historicamente machista, formado só por homens e trabalhamos muito para que esse contexto seja mudado. Estamos vendo, percebendo a evolução. Aqui em Mato Grosso, por exemplo, temos um conselho feminino muito ativo, participativo. Temos mulheres presidentes das principais comissões temáticas. A Comissão de Assuntos Tributários é presidido pela conselheira Daniele Fukui, a Comissão do Direito do Trabalho é presidida pela conselheira Roberta Borges, entre outras. Gradativamente, esse cenário vem mudando, mas isso é resultado de um esforço ao longo de muito tempo. Tivemos, em 2014, a implantação do sistema de cotas. Quando se fala em cotas, há sempre uma rejeição, uma discussão, uma forma de discriminar. Instituímos, agora, a resolução que estabelece 30% da participação de cada gênero nos eventos da OAB Mato Grosso. O que se mais ouve falar, quando o assunto é cotas, “Vocês mulheres não precisam disso, vocês têm competência". Sobre a competência e capacidade, eu não tenho dúvida de não precisamos disso [cotas]. Mas, temos um contexto histórico machista, patriarcal, isso não se muda sem ações afirmativas. Não precisamos, temos competência e capacidade, mas a sociedade precisa, o homem precisa. Nós, enquanto cidadãs desta sociedade precisamos mudar esse ambiente, para fazer com que essa igualdade preconizada na nossa Constituição Federal, um dos maiores e principais princípios, saia do âmbito jurídico e legal para um âmbito prático, e isso só acontece com ações afirmativas. Lá em 2014, quando veio a resolução federal, instituindo 30% de cada gênero nas chapas, a partir daí começou a mudar. Na época, salvo engano, nós éramos 16% ou 17% de mulheres participando do sistema OAB. Essa conta precisa se equalizar. Como que eu tenho 50% de mulheres advogadas inscritas e nos quadros da OAB, esse número não representava nem 20%. A partir daí, começou a mudar e vem mudando. É com políticas afirmativas, luta e trabalho, muitas vezes visto com maus olhos, mas são necessárias. Não obstante todas as críticas e ressalvas, o nosso contexto histórico e social, exige esse tipo de política afirmativa para que haja efetivamente uma mudança.

É necessário que haja um despertar desse interesse, que a mulher se levante e fale "Eu vou ocupar esse espaço". Enquanto ela está acomodada, isso não vai mudar. Os homens estão nos espaços, se não tiver mulher para sentar na cadeira, eles vão continuar sentados

Ponto na Curva: Então a senhora não acredita que seja discriminação, mas que é uma questão cultural?

Gisela Cardoso: A discriminação é outro aspecto inerente a nossa realidade cultural. Mas, falando em política de Ordem, esse contexto que nos levou a uma realidade que coloca a mulher sub-representada ali dentro. Não podemos esquecer que a mulher precisa manifestar o seu interesse em participar. É claro que não podemos atribuir essa baixa participação ou sub-representação ao desinteresse da mulher, mas ela precisa sair do seu escritório, precisa estar na OAB junto aos movimentos, porque é fácil também chegar a um determinado momento e falar "Ah, lá na OAB Mato Grosso não tem mulher” ou “Lá no Conselho Federal não tem mulher". É necessário que haja um despertar desse interesse, que a mulher se levante e fale "Eu vou ocupar esse espaço". Enquanto ela está acomodada, isso não vai mudar. Os homens estão nos espaços, se não tiver mulher para sentar na cadeira, eles vão continuar sentados. Sempre falo para as advogadas, nas palestras, onde nós estamos que ainda não estamos aqui na mesa? Somos 50% do número de inscritos, por que não somos 50% no número de representantes? Precisamos nos movimentar e mostrar o interesse e fazer com que esse direito seja garantido.

Ponto na Curva: Qual a importância de estar nesse cargo hoje? Como a senhora vê, tanto para uma questão pessoal, quanto para as mulheres para as advogadas?

Gisela Cardoso: Grande desafio da gestão, porque não é só um desejo meu Gisela, da nossa gestão, cito nosso presidente Leonardo Campos, nosso secretário-geral Flávio Ferreira, o secretário-adjunto Fernando Figueiredo, nosso tesoureiro Helmut Daltro, nosso conselho de uma forma geral, é um conselho que apoia a igualdade, a pluralidade e eu enquanto vice, minha participação e minha atuação pode despertar nas advogadas essa vontade. Sempre falamos em nossas reuniões como trazer a mulher advogada para dentro da OAB, pois a mulher naturalmente tem uma agenda mais assoberbada do que os homens, terminou expediente trabalho, tem expediente em casa, tem filho, marido e muitas vezes não vai deixar essas atividades para ir na reunião da OAB. É um desafio, mas estamos conseguindo, ao longo dessa gestão temos percebido uma participação mais efetiva da mulher nos quadros da OAB e isso nos deixa feliz, só vamos falar de democracia consolidada quanto tivermos igualdades. Espero que com nosso trabalho, todas conselheiras, membros de comissões possam mudar essa concepção e trazer cada vez mais mulheres para a OAB. Posso afirmar para você que as portas da OAB estão abertas para todas as mulheres que queiram participar, não há restrição ou discriminação nesse sentido.

Ponto na Curva: No mês de março, comemoramos o Dia Internacional da Mulher. O que representa essa data para o universo feminino, em especial na advocacia? Há o que se comemorar?

Gisela Cardoso: Data extremamente significativa, mantém viva a discussão sobre os direitos da mulher, não pode negar a evolução com relação isso. Em todos os anos no mês de março, para-se para falar do direito da mulher, então a data é significativa e representativa e tem que ser tratada com atenção que ela merece. Esse ano na nossa campanha da OAB é a mulher protagonista, vamos destacar essa condição. A mulher hoje é protagonista em vários aspectos e cenários da sociedade e para se chegar até esse protagonismo nem sempre foi muito fácil, várias barreiras foram necessárias ultrapassar. Então o mês de março nos proporciona essa discussão, falamos da violência contra mulher que é um tema a ser enfrentado no dia a dia, fala-se em desigualdade, discriminação, volta a tona a participação das mulheres em todos os cenários da sociedade, social, econômico, político. É claro que são discussões que seriam necessárias o ano todo, mas em março são, sim, mais afloradas e daí a importância da data.

Ponto na Curva: Pode listar avanços e retrocessos? O que ainda precisa mudar nos dias atuais?

Gisela Cardoso: Nas prerrogativas da mulher advogada temos lei específicas que garantem a suspensão dos prazos da advogada gestante, alteração na data da audiência, preferência em uma sustentação oral, esse são alguns avanço, mas ainda há algumas batalhas. A mulher advogada ainda tem algumas dificuldades em certos ambientes que tem características mais machistas e até em órgãos públicos por estar com uma saia acima do joelho, um decote mais acentuado, alguns fatores que precisam ser trabalhado.

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Gisela Alves Cardoso, vice-presidente da OAB em Mato Grosso

Ponto na Curva: Os índices de violência contra mulher ainda são preocupantes. Como vê esses números e essa realidade?

Gisela Cardoso: Violência é mais um problema histórico, que precisa ser enfrentado, os números são alarmantes, extrapola os limites do lar, passa para o ambiente de trabalho, unicamente em razão do gênero, pelo fato de você ser mulher. A tonificação do feminicídio é um avanço legislativo, a tipificação do crime pela condição da mulher com penas mais duras, não basta a legislação, é necessário todo um sistema para aplicação daquela norma. Cuiabá não tem uma delegacia da mulher que funcione 24 horas, embora isso seja um pleito de anos, que já foi encapado pela própria OAB. Funciona até às 18h e a maioria dos casos se dá a noite ou no fim de semana. Buscar a delegacia comum sem que haja um tratamento ideal para o caso, isso desestimula a mulher a denunciar. Ela aguenta aquela violência de forma silenciosa e pode culminar inclusive em um homicídio. É necessário um sistema como um todo, não apenas a legislação, o Estado precisa fornecer para essa mulher vítima de violência um amparo, condições de se realocar na sociedade, a questão é muito maior do que uma lei que prevê uma punição rigorosa, avanços legislativos são importantes, mas é preciso uma atuação maior do estado.

Ponto na Curva: A senhora tem pretensão de ser presidente da OAB?

Gisela Cardoso: Temos um grupo muito unido, que nos dá segurança para trabalhar, hoje qualquer um de nós estamos habilitados a se candidatar a presidente, assim como eu, se for de consenso colocarei meu nome a disposição. Esse grupo unido é importante para tomar uma decisão que seja melhor para categoria.

Ponto na Curva: Existe um desejo pessoal?

Gisela Cardoso: Hoje, meu desejo é continuar atuando pela OAB, é uma coisa que faço com muito amor e dedicação, tenho desejo de continuar à frente dessa instituição que é uma das mais respeitadas do país, meu desejo é continuar prestando esse serviço. É uma decisão de grupo e ainda não paramos para discutir a eleição que vai acontecer somente em 2021.