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Opinião Segunda-feira, 10 de Agosto de 2020, 15:40 - A | A

10 de Agosto de 2020, 15h:40 - A | A

Opinião /

O efeito penal da perda do cargo público não alcança aposentadoria deferida regularmente

Mostra-se, portanto, ilegítimo que a Administração Pública dê início ao procedimento de cassação da aposentadoria de servidor público com fundamento único em dar cumprimento à sentença penal



 

O Sistema penal brasileiro prevê como efeito da condenação penal a perda do “cargo público”, da “função pública” e até mesmo do “mandado eletivo”, quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública. Trata-se da redação do art. 92, I, “a”, do Código Penal.

No entanto, o efeito penal da perda do cargo público não alcança aposentadoria deferida regularmente pela Administração antes de proferida a sentença (ou acórdão) penal condenatória(o). Neste caso, razões de dogmática fundamentam a ilegitimidade de o Poder Público editar ato administrativo de cassação da aposentadoria de servidor público, ainda que a sentença (ou acórdão) penal condenatória(o) tenha imposto o efeito da perda do cargo público.

Com efeito, o direito penal tem na linguagem o limite do exercício da competência punitiva.Essa ideia revela uma garantia fundamental (legalidade, prevista expressa e fortemente pela Constituição da República, art. 5º, XXXIX). As restrições do direito penal são escritas, inadmitindo-se lei incriminadora fundada em costume, ou seja, condutas habituais com força ou senso de obrigatoriedade.

E também a lei penal é fruto do poder político do povo. Essa segunda afirmação decorre do princípio democrático. A humanidade tardou para inserir o povo como detentor do poder. Desgarrou-se do “poder absoluto” para alcançar importante assento na história do Estado Moderno. O povo é o que se chama de elemento humano do Estado, sendo-lhe parte indissociável.

O “marco inicial” do direito penal mais aceito entre os tratadistas é o estabelecimento de algumas garantias mínimas. O nascimento do direito penal moderno confunde-se com o surgimento do Iluminismo, notadamente com os escritos de Cesare Bonesana – o Marquês de Beccaria (1738-1794) –expoente da Escola Clássica do Direito Penal, ao lado de seu contemporâneo, o médico francêsJean-Paul Marat (1743-1793).

O novo horizonte apresentado pelo iluminismo situava-se na perspectiva das garantias mínimas da pessoa humana sujeita ao processo de repressão penal, dentre elas a exatidão dos tipos incriminadores (a descrição exata dos fatos tidos por indesejados)e da respectiva sanção penal, ambas decorrentes do respeito irrestrito à legalidade penal.

A humanidade finalmente passa ao largo das imposições do Monarca, em que lhe era possível adequações típicas para punir pessoas unicamente conforme interesses espúrios. Punia-se por discordâncias políticas, “inventando-se tipos penais” ou com “juízos delirantes de imputação penal”.

Com o passar livre do tempo, assentaram-se os princípios da legalidade e da separação dos poderes. A taxatividade alcançou patamar de direito fundamental do cidadão frente à máquina punitivista do Estado. O Direito não mais permite que o órgão da acusação oficial formule “juízos delirantes de imputação penal”, tampouco o magistrado quando da sentença. O sistema penal não mais pode ser manipulado. A lei é de ser certa.

Dentro dessa perspectiva, leis penais impositivas de restrição a direitos humanos fundamentais devem ser aplicadas em sua medida exata, ou seja, a interpretação é cerrada, estrita, restritiva, exclusiva, sob pena de agressão direta ao texto constitucional, que assegura a legalidade.

A violência estatal é signo da vacilância na linguagem, laconismo e das aberturas semânticas, das descrições escuras, colocadas para ao final serem hermeneutizadas e robustecidas da retórica do risco social, quando ensopadas pela figura mitológica do direito penal da defesa social, ideologia fundada em critérios etiológicos, sepultada pela criminologia moderna.

Dessa forma, ainda que condenado por crime praticado durante o período de atividade, o servidor público não pode ter a sua aposentadoria cassada com fundamento no art. 92, I, do Código Penal, mesmo que a sua aposentadoria tenha ocorrido no curso da ação penal, sob pena de afronta à legalidade penal.

Os efeitos de condenação criminal previstos no art. 92, I, do Código Penal, embora possam repercutir na esfera das relações extrapenais, são efeitos penais, na medida em que decorrem de lei penal. Pela natureza constrangedora desses efeitos (que acarretam restrição ou perda de direitos), eles somente podem ser declarados nas hipóteses restritas do dispositivo mencionado, o que implica afirmar que o rol do art. 92 do Código Penal é taxativo, sendo vedada a interpretação extensiva ou analógica para estendê-los em desfavor do acusado, sob pena de afronta ao princípio da legalidade.

Dessa maneira, como a previsão legal é dirigida para a “perda de cargo, função pública ou mandato eletivo” não se pode estendê-la ao servidor que se aposentou, ainda que no decorrer da ação penal, vez que ele não ocupa cargo e nem exerce função pública.

Nesse sentido, Dalmo Dallari entende que só podem ser aplicadas as penas previstas na lei penal, como privação de liberdade e multa, e, que acassação da aposentadoria não é pena prevista na lei penal. E, nem se diga que é sucedâneo da perda de cargo, pois não é admitida a interpretação extensiva com o fim de gerar prejuízo para a parte .

Também é a posição de Guilherme de Souza Nucci:

[...] A aposentadoria, que é o direito à inatividade remunerada, não é abrangida pelo disposto no art. 92. A condenação criminal, portanto, somente afeta o servidor ativo, ocupante efetivo de cargo, emprego, função ou mandato eletivo. Caso já tenha passado à inatividade, não mais estando em exercício, não pode ser afetado por condenação criminal, ainda que esta advenha de fato cometido quando ainda estava ativo. Se for cabível, a medida de cassação da aposentadoria deve dar-se na órbita administrativa, não sendo atribuição do juiz criminal.

Esse é também o entendimento pacificado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL E AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CORRUPÇÃO PASSIVA. [...]

3. CRIME COMETIDO NA ATIVIDADE. POSTERIOR APOSENTADORIA. PERDA DO CARGO PÚBLICO. ART. 92, I, ALÍNEA "A", DO CP. ROL TAXATIVO. CASSAÇÃO DA APOSENTADORIA. ILEGITIMIDADE.

PRECEDENTES. 3. AGRAVO NÃO CONHECIDO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.

[...]

3. Condenado por crime funcional praticado em atividade, anteriormente à aposentaria, que se deu no curso da ação penal, não é possível declarar a perda do cargo e da função pública de servidor inativo, como efeito específico da condenação. A cassação da aposentadoria, com lastro no art. 92, I, alínea "a", do Código Penal, é ilegítima, tendo em vista a falta de previsão legal e a impossibilidade de ampliar essas hipóteses em prejuízo do condenado.

3. Agravo não conhecido e recurso especial parcialmente procedente.

(REsp 1416477/SP, Rel. Ministro WALTER DE ALMEIDA GUILHERME (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), QUINTA TURMA, julgado em 18/11/2014, DJe 26/11/2014).

RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME DE TORTURA. POLICIAL MILITAR REFORMADO. CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA. EFEITO EXTRA-PENAL DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. INAPLICABILIDADE DO ART. 92, INCISO I, ALÍNEA B, DO CÓDIGO PENAL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA PENALIDADE DE CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA NA ESFERA ADMINISTRATIVA, NOS TERMOS LEGALMENTE PREVISTOS. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.

1. O efeito da condenação relativo à perda de cargo público, previsto no art. 92, inciso I, alínea b, do Código Penal, não se aplica ao servidor público inativo, uma vez que ele não ocupa cargo e nem exerce função pública.

2. O rol do art. 92 do Código Penal é taxativo, não sendo possível a ampliação ou flexibilização da norma, em evidente prejuízo do réu, restando vedada qualquer interpretação extensiva ou analógica dos efeitos da condenação nele previstos.

3. Configurando a aposentadoria ato jurídico perfeito, com preenchimento dos requisitos legais, é descabida sua desconstituição, desde logo, como efeito extrapenal específico da sentença condenatória; não se excluindo, todavia, a possibilidade de cassação da aposentadoria nas vias administrativas, em procedimento próprio, conforme estabelecido em lei.

4. Recurso especial desprovido.
(REsp 1317487/MT, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 07/08/2014, DJe 22/08/2014)

PENAL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. CONDENAÇÃO CRIMINAL. EFEITOS. APOSENTADORIA. CASSAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.

1. A Sexta Turma desta Corte não tem admitido a cassação da aposentadoria como consectário lógico da condenação criminal, em razão de ausência de previsão legal. Precedente.

2. Recurso em mandado de segurança a que se dá provimento.

(RMS 31.980/ES, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 02/10/2012, DJe 30/10/2012)

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 92, I, "B", DO CP. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. INOCORRÊNCIA. PERDA DO CARGO PÚBLICO. APOSENTADORIA SUPERVENIENTE AO DELITO. POSSIBILIDADE DE CASSAÇÃO. ACÓRDÃO EM CONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE.

SÚMULA 83/STJ. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO (POSIÇÃO VENCIDA DA RELATORA). ENTENDIMENTO MAJORITÁRIO: VIOLAÇÃO DE LEI FEDERAL. OCORRÊNCIA. RECURSO PROVIDO.

1. Segundo a ótica majoritária da colenda Sexta Turma, construída a partir do voto divergente do eminente Ministro Sebastião Reis Júnior, é inviável ter-se como efeito da condenação penal a perda da aposentadoria, em razão de inexistente previsão legal.

2. Recurso especial da defesa a que se dá provimento (com voto vencido da relatora).
(REsp 1250950/DF, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 19/06/2012, DJe 27/06/2012)

Em conclusão, o efeito da condenação relativo à perda de cargo público, previsto no art. 92, I, do Código Penal, não se aplica ao servidor público inativo, uma vez que ele não ocupa cargo e nem exerce função pública. Trata-se de rol taxativo, não sendo possível a ampliação ou flexibilização da norma, em evidente prejuízo do réu, restando vedada qualquer interpretação extensiva ou analógica dos efeitos da condenação nele previstos.

Configurando a aposentadoria ato jurídico perfeito, com preenchimento dos requisitos legais, é descabida sua desconstituição, desde logo, como efeito extrapenal específico da sentença condenatória; não se excluindo, todavia, a possibilidade de cassação da aposentadoria na via administrativa, em procedimento próprio, conforme estabelecido em lei, desde que a falta punível seja compatível com a demissão e não propriamente o cumprimento da sentença penal condenatória que venha a decretar a perda do cargo público, porque se tratam de situações jurídicas absolutamente distintas.

Mostra-se, portanto, ilegítimo que a Administração Pública dê início ao procedimento de cassação da aposentadoria de servidor público com fundamento único em dar cumprimento à sentença penal condenatória que decretou a perda do cargo público, na medida em que a decisão jurisdicional não atinge a inatividade, porquanto a lei penal nada dispõe a respeito, sendo até mesmo inconstitucional a medida do Poder Público.

VALBER MELO. Advogado criminalista. Doutor em Direito. Professor de Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Direito Penal Econômico (COIMBRA-IBCCRIM). Pós-graduado em Ciências Criminais, Especialista em Direito Penal e Processual Penal e Especialista em Direito Público. Membro da Comissão de Juristas do CNMP para Reforma do Código Penal. Conselheiro Nacional da ABRACRIM-MT. Membro da Comissão Nacional do Direito de Defesa da OAB. Presidente da Comissão de Direito Penal do IAMAT.

FERNANDO FARIA. Advogado criminalista. Mestrando em Direito Penal (UBA). Especialista em Direito Penal (FMP). Procurador da ABRACRIM/MT. Membro do Instituto dos Advogados Mato-grossenses – IAMAT.

FILIPE MAIA BROETO. Advogado criminalista. Professor de Direito Penal. Mestrando em Direito Penal (UBA). Especialista em Ciências Penais (UCAM), Processo Penal (COIMBRA/IBCCRIM) e Direito Público (UCAM). Membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABRACRIM e do Instituto dos Advogados Mato-grossenses – IAMAT. Autor e coautor de livros e artigos jurídicos.