No último dia 03 de agosto, o Supremo Tribunal Federal deu início ao julgamento que irá definir eventual retroatividade da Lei nº 14.230/2021, especialmente no que se refere aos novos prazos de prescrição geral e intercorrente e na exigência de dolo para a comprovação de ato ímprobo.
É certo que o reconhecimento de repercussão geral (Tema 1199/STF/ARE. nº 843.989) da matéria tratada fez com que estas alterações trazidas pelo novo diploma legislativo se tornassem a tônica dos debates jurídicos e políticos sobre as alterações promovidas pela nova lei de improbidade.
Por outro lado, é necessário recordar que não são apenas as mudanças atinentes à prescrição e ao elemento subjetivo no cometimento do ilícito que merecem um olhar atento do intérprete, especialmente quando se discute a retroatividade ou não das novas normas.
Inobstante a existência de entendimento diverso, é fato que a aplicação retroativa da lex mellius no sistema de improbidade administrativa é medida amplamente adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, que reconhece a nítida afinidade entre as normas que disciplinam o direito administrativo sancionador e aquelas que regem o direito penal. O Egrégio do Estado de Mato Grosso, inclusive, já aplicou a retroatividade da nova lei a partir desse raciocínio.
Também convém destacar que a emenda nº 40 do Projeto de Lei que instituiu as mudanças na lei de improbidade administrativa objetivava tornar expresso a retroatividade da lei benéfica e só deixou de ser acolhida diante da desnecessidade, face ao entendimento jurisprudencial já consolidado.
Partindo, pois, da premissa de que assiste razão ao STJ e assumindo uma interpretação teleológica sobre a nova lei, deve-se deixar claro que, para além de simples modificações, a novel legislação promoveu uma verdadeira reforma no regime jurídico da improbidade administrativa, com alterações em quase todos os dispositivos da Lei 8.429/92, excetuando-se apenas os artigos 15 e 19.
Assim, sem a pretensão de comentar todas as transformações, volvemos nossa atenção para a nova redação do artigo 11, que trata dos ilícitos praticados na modalidade de atos atentatórios aos os princípios da administração pública e que, já em seu caput, indica a existência de um rol taxativo, em oposição ao rol exemplificativo que vigorava até então.
No ponto, apesar de complementar o rol já existente e incluir novas formas de cometimento do ilícito, o que se observa é que o legislador optou por retirar deste rol os incisos I e II, promovendo uma verdadeira abolitio improbitatis, isto é, houve uma clara mudança na valoração de um fato e uma consequente adequação da norma, de modo que determinadas condutas que antes eram vistas como ímprobas agora deixaram de ser, permanecendo apenas aquelas com lesividade relevante.
Outro ponto que merece destaque dentro das mudanças do art. 11 diz respeito às possíveis penas a serem aplicadas.
Durante as três décadas de vigência da lei de improbidade administrativa, a jurisprudência e doutrina tem firmado entendimento de que a perda da função pública está entre as penalidades mais severas daquele microssistema e sua aplicação só deveria ocorrer em casos graves.
Do nítido abismo entre o que deveria ocorrer e o que ocorre, pode-se afirmar com muita certeza que a sociedade e o direito não caminham na mesma velocidade, vez que o caráter mais engessado do ordenamento jurídico dificilmente consegue acompanhar a dinâmica das relações sociais, conferindo à jurisprudência o papel de protagonista na tentativa de adequar a intenção do legislador ao novo contexto social.
Ocorre que, com “alguns anos de atraso”, a nova lei de improbidade, positivando aquilo que já era aplicado pela jurisprudência, extinguiu esta modalidade de pena nos casos em que a improbidade administrativa consistiu na violação dos princípios da administração pública. Daí porque seria equivocado afirmar que todas inovações legislativas despenalizadoras representariam retrocesso.
Por interpretação analógica do dispositivo esculpido no art. 2º do Código Penal, é forçoso reconhecer que a retroatividade da lei benéfica, em especial da nova roupagem do art. 11 da Lei nº 8.429/92 – quer pela abolitio improbitatis quer pela revogação da pena de perda de cargo e função pública – não só atinge casos em andamento iniciados no âmbito da vigência da lei anterior, mas também é capaz de transformar decisões já alcançadas pela coisa julgada.
O julgamento do Tema 1199/STF/ARE. nº 843.989 será retomado nesta quarta- feira (10 de agosto) e, ainda que a pauta da vez não verse sobre a retroatividade de toda a Lei 14.230/2021, é certo que poderemos ter uma amostra de qual deverá ser a orientação jurisprudencial definitiva para todos os demais dispositivos da nova lei de improbidade administrativa.
José Eduardo Espósito é advogado, sócio do Escritório Espósito Advocacia, especialista em Direito Penal e Processual Penal |FESMP-MT, e pós-graduando em Direito Penal Econômico | PUC-MG