A Conferência Internacional da Haia de Direito Internacional Privado é uma organização intergovernamental de caráter global, que tem por objetivo e missão estatutária trabalhar pela unificação progressiva das regras de direito internacional privado, imprescindı́veis na resolução de situações comerciais, pessoais e familiares, cada vez mais comuns e que envolvem, ao mesmo tempo, pessoas e objetos de diferentes paı́ses.
Em se tratando da Convenção sobre os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças, a restituição da criança não é principio absoluto, devendo ser excepcionada para atender ao melhor interesse da criança. Assim, enquanto o preâmbulo da Convenção indica que a restituição da criança ao seu local de residência habitual é o que mais atende a esse melhor interesse da criança, as exceções à restituição, elencadas nos artigos 12, 13 e 20, em conjunto com o poder discricionário conferido pela sistemática convencional aos órgãos julgadores do Estado Requerido passam a ter relevante papel no encontro da solução que mais atenda, em cada caso especı́fico, ao melhor interesse da criança. Tais exceções, ou válvulas de segurança -- safety valves --, parecem “conferir ao documento a flexibilidade e discricionariedade para evitar-se que a aplicação dos ditames convencionais traga danos à criança”.
É reconhecido que a Convenção da Haia possui caráter de norma supralegal, nos termos dos julgados RE466.3434; HC87.585/TO; RE349703/RS; HC92566/SP, caracterizando que o artigo 227 da Constituição se mantém como norteador dos instrumentos protetivos da infância.
“PROCESSUAL CIVIL E DIREITO INTERNACIONAL. CAUTELAR. BUSCA, APREENSÃO E REPATRIAMENTO DE MENORES. CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS DO SEQÜESTRO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS. LEGITIMIDADE ATIVA DA UNIÃO FEDERAL. MÉRITO: RETENÇÃO ILÍCITA. NÃO COMPROVAÇÃO. PREVALÊNCIA DO INTERESSE DO MENOR. ORIENTAÇÃO DO STJ. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS E, NO MÉRITO, IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO CAUTELAR (ART 515, § 3º,DO CPC). –(...) -Como a matéria sub examine diz respeito à matéria unicamente de direito (aplicação da Convenção de Haia) no sentido de se aferir se a remoção dos menores é lícita ou não e se, sendo ilícita, verificar se o retorno caracteriza risco para o bem estar (arts. 3º e 13 da Convenção), impõe-se a aplicação do art. 515, § 3º, do CPC.-Ressalte-se, ainda, o fato de o pai dos menores ter ingressado nos autos como assistente simples da requerente, UNIÃO, inclusive participando da audiência de instrução e julgamento na Justiça Federal e interpondo recurso de apelação, acrescido ao fato da natureza da ação, que demanda celeridade para o deslinde de litígio relativo a interesses de menores com base em observância de Convenção Internacional. -Não restou configurada nos autos a retenção ilícita dos menores no Brasil, tendo sido acostados elementos que indicam o propósito da família em aqui permanecer, acrescido ainda ao fato de que a própria requerida confessa, em audiência, que comunicou ao esposo que não desejava mais viver com ele após o seu regresso à Argentina e, noutro enfoque, vê-se que a marcação de volta em bilhete aéreo, à Argentina, dos filhos e da mãe, nem sempre confirma que será realizada, tendo em vista que, na maioria das vezes, é mais barata a compra de dois trechos. -Como o eg. Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que, em casos de seqüestro internacional, deve ser levado em conta, em primeiro lugar, o interesse do menor, importante ressaltar que os menores já estão integrados ao novo meio, consoante elementos dos autos e relatório de Assistente Social. -Assim, não sendo comprovada inequivocamente a retenção ilícita dos menores, que já se encontram integrados no Brasil e há considerável tempo (05 anos), não deve ser determinado o retorno (art. 12 da Convenção), notadamente se ficarem sujeitos a danos de ordem emocional e psíquica (art. 13, “b”, da Convenção), caracterizando como interesse primordial o do menor, de que é exemplo o entendimento do eg. STJ (3ª Turma, REsp 900262/RJ, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, unânime, DJU de 08.11.2007), precedente no qual deixou esposado, outrossim, que, mesmo estando configurada a retenção ilícita de menor no Brasil, não foi determinado o seu retorno aos EUA. -Destarte, com base nos elementos dos autos e notadamente no estudo social, verifica-se que os menores gozam de desenvolvimento físico, psíquico, social e financeiro necessários a uma vida digna, embora sem a companhia permanente do pai, estando presentes os requisitos para o cumprimento dos objetivos da Convenção de Haia, que é a proteção primordial do interesse do menor. -Como neste processo não se discute a guarda das crianças e sim a possibilidade ou não do retorno à Argentina, a decisão de guarda proferida pela Justiça Estadual, constando, como última, a concessão de guarda provisória (fl. 459), não tem aptidão para produzir efeitos nesta demanda, nos termos do art. 17 e 19 da Convenção em tela. -No tocante à rogatória referente à ação de guarda ajuizada pelo pai dos menores na Argentina, determinando o retorno dos mesmos, não produz efeitos, sob pena de ofender a soberania nacional e a ordem social, uma vez que compete ao eg. STJ processar e julgar originariamente a concessão de exequatur às cartas rogatórias (CF, art 105, I, “i”, com redação dada pela EC 45/2004), norma esta aplicável imediatamente, projetando-se, desde o início de sua vigência, com eficácia ex nunc (RTJ 155/582-583, RTJ 71/726), e não há comprovação de que haja tal procedimento. -Recursos parcialmente providos para, tão-somente, reconhecer a legitimidade da UNIÃO FEDERAL e, em relação ao mérito, com base no art. 515, § 3º, do CPC, julgar improcedente o pedido cautelar.” (STJ, AC 388822 RJ 2003.51.01.018494- 5)
Atualmente, o direito brasileiro está integrado com um novo tipo de controle das normas infraconstitucionais, que é o controle de convencionalidade das leis, tema que antes da EC 45/045 era totalmente desconhecido entre nós.
Pode-se também concluir que, dali pra frente, a produção normativa doméstica conta com um duplo limite vertical material, a CF/88 e os. tratados de direitos humanos, como primeiro limite e os tratados internacionais comuns em vigor no país, em segundo limite.
Os tratados podem ter sido ou não aprovados com o quórum qualificado que o art. 5º, § 3º da CF/88 prevê. Caso não tenham sido aprovados com essa maioria qualificada, seu status será de norma – somente – materialmente constitucional, o que lhes garante serem paradigma de controle somente difuso de convencionalidade. Caso tenham sido aprovados -- e entrado em vigor no plano interno, após sua ratificação -- pela sistemática do artigo 5º, § 3º da Constituição Federal, tais tratados serão materialmente e formalmente constitucionais, e assim servirão também de paradigma do controle concentrado -- para além, é claro, do difuso -- de convencionalidade.
Aos tratados internacionais denominados comuns, temos como certo que eles servem de paradigma do controle de supralegalidade das normas infraconstitucionais, de sorte que a incompatibilidade destas com os preceitos contidos naqueles invalida a disposição legislativa em causa em benefício da aplicação do tratado.
Logo, caso algum tratado venha a ser devidamente aprovado pelas duas casas legislativas com quórum qualificado (de três quintos, em duas votações em cada casa) e ratificado pelo Presidente da República, terá ele valor de Emenda Constitucional (CF, art. 5º, § 3º, com redação dada pela EC 45/04), fora disso, todos os demais tratados de direitos humanos vigentes no Brasil contam com valor supralegal, ou seja: valem mais do que a lei e menos que a Constituição.
Isso possui o significado de uma verdadeira revolução na pirâmide jurídica de Kelsen, que era composta apenas pelas leis ordinárias (na base) e a Constituição formal (no topo).
A Convenção da Haia foi promulgada através de decreto, pelo que contou com a participação do Congresso Nacional diante do Decreto Legislativo nº 79/99. Portanto, quanto aos tratados de direitos humanos não internalizados pelo quórum qualificado, passam eles a ser paradigma apenas do controle difuso de convencionalidade.
No contexto nos cabe concluir que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados e vigentes no Brasil – mas não aprovados com quórum qualificado – possuem nível apenas supralegal (posição do Min. Gilmar Mendes, no RE 466.343-SP e HC 87.585-TO), e que os tratados de direitos humanos não contam com valor constitucional, eles servem de paradigma apenas para o controle difuso de convencionalidade – ou também chamado de supralegalidade (para Valerio Mazzuoli há uma distinção entre controle de convencionalidade – que versa sobre os tratados de direitos humanos – e controle de supralidade – que diz respeito aos demais tratados).
O controle difuso de convencionalidade desses tratados com status supralegal deve ser levantado em linha de preliminar, em cada caso concreto, cabendo ao juiz respectivo a análise dessa matéria antes do exame do mérito do pedido principal. Em outras palavras: o controle difuso de convencionalidade pode ser invocado perante qualquer juízo e deve ser feito por qualquer juiz.
A Convenção da Haia tem status de supralegal, o que nos remete sua situação inferior ao artigo 227 da Constituição Federal.
Neste sentido, as considerações acerca da aplicação da Haia tem caráter essencialmente subjetivas, vez que em confronto com a Doutrina da Proteção Integral, exigem do juiz à descoberta do que lhe parece ser o melhor interesse da criança em cada caso concreto.
Sendo considerada menor que a Constituição e maior que as infraconstitucionais, a interpretação da Convenção, em síntese, deve ser dada conforme o ordenamento constitucional brasileiro, e no caso de infante, com base na Doutrina da Proteção Integral, esculpidos em nível de Princípio Constitucional no artigo 227 da Carta Maior:
“Art. 227 CF - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
É bem verdade que a Doutrina da Proteção Integral superou o direito tradicional que não percebia a criança como indivíduo: agora a criança e adolescentes são tratadas como sujeitos de Direito em sua integralidade.
A Constituição de 1988, afastando a doutrina da situação irregular, assegurou às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, direitos fundamentais, determinando à família, à sociedade e ao Estado o dever legal e concorrente de assegurá-los.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, derivado do artigo constitucional, estabelece primazia em favor das crianças e dos adolescentes em todas as esferas de interesse, seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo, social ou familiar.
Como desdobramento da Doutrina da Proteção Integral, o Princípio da Prioridade Absoluta leva em consideração que criança é pessoa em desenvolvimento, possuindo uma fragilidade peculiar de pessoa em formação, correndo mais risco que o adulto.
Emerge, portanto, a “socialização da responsabilidade” a fim de que se evite danos ao infante.
Nessa esteira, cabe ao poder público, em todas as suas esferas, respeitar e guardar em primazia os Direitos fundamentais infanto-juvenis.
Partindo da premissa de respeitar e guardar em primazia os direitos da criança que ilustra este processo, quando a mulher, mãe e vı́tima de violência doméstica é denunciada como sequestradora pela fuga junto de seu filho, quando ela é acionada pela autoridade central de um Estado-Parte a fim de promover o retorno da criança, ela se depara com a escolha de deixar o infante voltar sozinho para a presença do pai, com tendências violentas ou de retornar acompanhando a criança, enfrentando a potencial retomada da situação de abuso, já que voltará a conviver com o agressor.
Pesquisas indicam que “...ao retornar com seus filhos, essas mulheres colocam-se em um verdadeiro limbo, vez que, tendo muitas vezes desfeito todos os laços com o companheiro e também outros sociais antes de fugir, ao retornar restará desprovida de recursos e completamente dependente do companheiro agressor”:
“Portanto, esse rápido retorno da criança à residência habitual significa um retorno rápido da mãe ao agressor. Para uma vítima de violência doméstica tal retorno imediato é perigoso. Eles não estão apenas sujeitos a um risco de violência mais intensa, mas também correm um risco maior de serem até mesmo assassinadas, pois estão compartilhando suas vidas com um homem (que é companheiro e pai) violento” (QUILLEN, Brian. The new face of International Child Abduction: Domestic Violence Victims and Their treatment under the Hague Convention on the Civil Aspects of International Child Abduction. Texas: Texas School of Law, 2014. p. 627).
Ademais, não é possı́vel desconsiderar as implicações que o contexto de violência doméstica poderá acarretar à criança. A exposição aos conflitos e a situação de abuso tem efeitos psicológicos negativos à criança, desencadeando sentimentos de medo, insegurança, ansiedade, baixa auto-estima e até mesmo culpa, que podem se agravar com o decorrer do tempo.
O próprio Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) já atestou que a violência entre os genitores, na maior parte das vezes, contra a mãe, aumenta a situação de risco da criança. Além disso, a frequente exposição à situações de violência em seus lares podem afetar de maneira severa o seu desenvolvimento pessoal e sua interação social na infância e na fase adulta. Do mesmo modo, a violência entre parceiros ı́ntimos também aumenta em pelo menos duas vezes o risco de ocorrerem atos de violência contra a criança.
Percebe-se então que a situação de violência doméstica pode fazer da criança uma vı́tima direta como também indireta das agressões, vez que poderá sofrer impactos decorrentes da situação suportada pela mãe. Vale ainda lembrar que isso ocorre, na maioria das vezes, porque as crianças estão em casa no momento das agressões, sendo elas, em muitos aspectos, as testemunhas diretas do ocorrido.
Os efeitos da violência permanecem no imaginário da criança, ainda que a mãe não conviva mais com o pai, pelo que o propósito de preservação do melhor interesse da criança, materializado na Convenção a partir da imposição do retorno imediato pode facilmente ser descaracterizado no contexto das fugas em razão da violência doméstica.
A violência doméstica tem várias facetas, podendo ser fı́sica, psicológica e/ou sexual, e pode ser direcionada tanto a criança quanto ao genitor abdutor ou outros membros da famı́lia9. A chamada “intimidatory litigation” pode ser muito prejudicial tanto ao cônjuge vı́tima, quanto à criança, especialmente se houver um desequilı́brio financeiro entre as partes. Pesquisas mostram inclusive
Segundo Natália Camba Martins10, pesquisas têm demonstrado que existe um risco real de prejuı́zo e graves danos psicológicos oriundos da convivência de uma criança em um lar de violência doméstica, mesmo que os atos de violência sejam direcionados a outros membros e não a ela. Crianças que vivem nesse contexto, em geral, sofrem graves problemas emocionais, como medo, insegurança, ansiedade, baixa autoestima e culpa. Podem também apresentar manifestações fı́sicas do forte trauma que viveram, como a dependência em drogas e o uso da violência para resolver qualquer tipo de conflito. Outros estudos, de natureza social, demonstram que abusadores de esposas podem também tornar-se abusadores de crianças, já que se aumenta a chance de danos fı́sicos e psı́quicos direcionados à ela quando está em contato frequente com um abusador de esposas.
Em que pese a Convenção estar atrelada ao bem-estar da criança, fato é que seu texto padece de uma grave falta de sistematicidade, típico das convenções internacionais multilaterais, nas quais o texto final é resultado de um compromisso diplomático que, no mais das vezes, é alcançado em detrimento da melhor técnica jurídica.
Diante da falta de uniformidade na aplicação da Convenção questão em casos de violência doméstica, cabe ao órgão a função de reconhecer que a violência doméstica e o medo de sua ocorrência podem ser fatores que, em muitas circunstâncias, podem levar à manutenção da criança no paı́s de refúgio.
Não podemos esquecer que é bem verdade que as brasileiras sofrem grande preconceito quando estão no estrangeiro, fomentado pela indústria do turismo sexual que teima em perpetuar a ideia de que nossas mulheres são prostitutas.
Não menos é a desigualdade de gênero no âmbito internacional, que se revela através da violência, seja ela psicológica, moral, sexual ou física. Várias são as formas de agressões que sofrem as mulheres, nos podendo afirmar que o modelo de família patriarcal tem grande influência sobre a violência de gêneros, tendo em vista que ela se dá geralmente pelos maridos, pais ou irmãos.
Conforme orientação do Estatuto da Conferência da Haia sobre Direito Internacional Privado (HCCH #1), em vigor desde 1955, “o propósito desta Conferência de Haia é trabalhar para a unificação progressiva das normas de direito internacional privado”.
Beaumont e McEleavy explicam que Adair Dyer, antigo Secretário Geral da Conferência de Haia, reconheceu que quando a Convenção estava sendo elaborada nos anos 70, a típica figura do genitor abdutor era a do pai da criança cuja guarda não lhe tinha sido concedida, e por isso fugia com a criança.
A pesquisa estatística dos casos de aplicação da Convenção, do Professor Nigel Lowe, de 2008, demonstra que 69% dos “taking parentes” eram mães, e 28% eram pais.
Em outras palavras, a figura do genitor abdutor está bastante afastada da figura original com base na qual a Convenção foi criada. Nesse contexto, Merle H. Weiner argumenta que diante dessa mudança, a obrigação de retorno da criança como fundamento último da Convenção faz menos sentido para as mães que estão fugindo de uma situação de abuso, e ao fazê-lo, levam seus filhos com elas13, tornando o texto da Convenção ultrapassado para a nova realidade em que vivemos.
Por mais que os principais documentos internacionais de tutela dos direitos humanos que há muito proclamam a igualdade de todos, não obstante, tal igualdade tem permanecido meramente formal, sendo árdua a tarefa de transformá-la em igualdade real entre mulheres e homens, principalmente quando se constata que a construção histórica dos direitos humanos sempre ocorreu com a exclusão da mulher e o reforço de ideologias patriarcais.
Apenas em 1993, a Conferência Mundial dos Direitos Humanos, reconheceu no artigo 18 de sua Declaração que:
“...os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais. A violência de gênero e todas as formas de assédio e exploração sexual são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem ser eliminadas. Os direitos humanos das mulheres devem ser parte integrante das atividades das Nações Unidas, que devem incluir a promoção de todos os instrumentos de direitos humanos relacionados à mulher”.
No sistema protetivo, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher insere-se no sistema regional-especial de proteção aos direitos humanos. Aprovada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos em 9 de junho de 1994, a Convenção foi incorporada ao ordenamento jurı́dico brasileiro com a promulgação do Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996.
A Convenção do Pará, como é chamada a Convenção Interamericana, afirma “que a violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais e limita total ou parcialmente a observância, gozo e exercício de tais direitos e liberdades”.
“Convenção do Pará, artigo 6, o direito de toda mulher a ser livre de violência abrange, entre outros: b. o direito da mulher a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação.”
Incorporada no ordenamento prátrio pelo Decreto nº 4.377/96, a Convenção da ONU sobre a Mulher é composta por um preâmbulo e trinta artigos dispostos em seis partes, quando logo em seu intróito o documento relembra que “a discriminação contra a mulher viola os princı́pios da igualdade de direitos e do respeito da dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviço a seu país e à humanidade”.
A Convenção da Haia prevê excludentes ao retorno da criança, sendo que a primeira das exceções, descrita na alínea “a” do artigo 13, trata da situação em que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a criança em seu cuidado não exercia efetivamente a guarda na época da transferência ou retenção, ou que houvesse concordado ou consentido posteriormente com a retirada da criança do país de residência habitual.
A alínea “b” do artigo 13 descreve outra importante hipótese que é a existência de risco grave à criança, capaz de deixa-la exposta à situações de perigo de ordem física ou psíquica, ou de qualquer outra forma, ficar em situação referida como intolerável. Ainda com intuito de preservação da integridade da criança, o Estado poderá recusar o retorno quando ela própria manifestar oposição ou quando já tiver atingido a idade e maturidade suficientes para considerar a sua opinião sobre o local de sua residência. Para tanto, também serão levadas em conta as informações sobre a situação social da criança apresentadas pela Autoridade Central ou qualquer outra autoridade competente do Estado de residência habitual da criança.
Em complemento às exceções mencionadas, o artigo 20 ainda dispõe que o retorno da criança também poderá ser recusado quando não for compatível com os princípios fundamentais do Estado requerido, com relação à proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais. Tais exceções são de fundamental importância para a aplicação contemporânea da Convenção, vez que, nem sempre, o retorno da criança significará, de fato, a proteção do seu melhor interesse, sobretudo quando considerado que existem inúmeros fatores, no próprio ambiente familiar e perpetrado pelos próprios genitores que podem ensejar riscos à sua proteção integral.
O dialogo que estamos propondo é que um desses fatores de exceções consista em incluir a violência doméstica praticada pelo genitor contra a genitora, que em exegese aos dispositivos de direitos humanos elencados, deve ser interpretada a situação de grave risco à criança descrita no artigo 13, alínea “b”.
Os efeitos muito prejudiciais na criança não derivam somente do abuso perpetrado contra ela, mas também do mero convívio em um lar de abusos. A hipótese de violência que não envolve diretamente a criança não foi expressamente cogitada pela Convenção, mas é uma realidade que não pode ser ignorada, sob o risco de que o melhor interesse da criança seja violado e a Convenção se torne um instrumento para perpetrar abusos. Nos trabalhos preparatórios da Convenção, alguns representantes já se manifestaram no sentido de proteger essa realidade fática:
“Mr. Jones (United Kingdom) [...] Além disso, foi necessário adicionar as palavras ‘ou de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável’ já que muitas situações não eram acobertadas pelo conceito de “perigos de ordem física ou psíquica”. Por exemplo, quando um cônjuge é vítima de violência e ameaças pelo outro cônjuge e foi forçado a fugir do lar do casal, pode ser argumentado que a criança não sofreu nenhum dano físico ou psíquico, mas estava claramente exposto a uma situação intolerável”
Brian Quillen, nos alerta para o fato de que, atualmente, a maior parte dos casos de rapto internacional de crianças envolvem mulheres, que são mães, fugindo com seus filhos em razão de algum tipo de violência praticada.
É importante ressaltar que pesquisas têm demonstrado que existe um risco real de prejuízo e graves danos psicológicos oriundos da convivência de uma criança em uma lar de violência doméstica, mesmo que os atos de violência sejam direcionados a outros membros e não a ela. Crianças que vivem nesse contexto, em geral, sofrem graves problemas emocionais, como medo, insegurança, ansiedade, baixa autoestima e culpa. Podem também apresentar manifestações físicas do forte trauma que viveram, como a dependência em drogas e o uso da violência para resolver qualquer tipo de conflito. Outros estudos, de natureza social, demonstram que abusadores de esposas podem também tornar-se abusadores de crianças, já que aumenta-se a chance de danos físicos e psíquicos direcionados à ela quando está em contato frequente com um abusador de esposas16.
Conforme artigo publicado pela Secretaria da Conferência de Haia, já existem diversos relatos e trabalhos sobre a dificuldade dos Estados-Partes na compreensão da violência doméstica como situação de grave risco prevista como exceção, dentre algumas das razões para essa dificuldade estariam a ausência de meios para verificação da extensão ou consistência da violência doméstica, o reconhecimento insuficiente dos efeitos nocivos da violência doméstica para o desenvolvimento dos filhos e até mesmo a falta de legislação adequada sobre a violência doméstica e familiar, capaz de dar apoio ou suporte social as vítimas, se comprovada a afirmação.
A violência doméstica é problema enfrentada por brasileiras no mundo todo e ocorre em diferentes grupos sociais, independentemente da idade, raça, nível socioeconômico ou qualquer outro fator: a relação abusiva que se instala entre o perpetrador, aquele que causa a violência e a vítima, consiste em ato violador aos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, vez que afetam diretamente a dignidade da mulher .
Quando a mulher, mãe, vítima de violência doméstica é denunciada como sequestradora pela fuga do agressor junto de seu filho e acionada pela autoridade central de um Estado-Parte a fim de promover o retorno da criança ela se depara com a escolha de deixar o infante voltar sozinho para a presença do pai, com tendências violentas ou de retornar acompanhando a criança, enfrentando a potencial retomada da situação de abuso, já que voltará a conviver com o agressor.
Ademais, não é possível desconsiderar as implicações que o contexto de violência doméstica poderá acarretar à criança: a exposição aos conflitos e a situação de abuso tem efeitos psicológicos negativos à criança, desencadeando sentimentos de medo, insegurança, ansiedade, baixa auto-estima e até mesmo culpa, que podem se agravar com o decorrer do tempo19.
Os dilemas envolvendo violência doméstica e a aplicação da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças também encontram seus entraves na prática brasileira. Inicialmente, é preciso considerar que existe uma tendência de interpretar as exceções presentes na Convenção de maneira restritiva.
Para se ter uma ideia, a primeira vez que o tópico da violência foi incluído expressamente na agenda de trabalho foi na 5ª Reunião da Comissão Especial sobre o funcionamento da Convenção de Haia de 1980, foi em 2006, que levou em conta a intensificação do número de casos de violência sexual cometido contra a genitora pelo genitor, concluindo que a interpretação e a aplicação da Convenção não pode deixar de considerar esse novo contexto.
A violência doméstica tem várias facetas, podendo ser física, psicológica e/ou sexual, e pode ser direcionada tanto a criança quanto ao genitor abdutor ou outros membros da família20 .
O litígio no âmbito da Convenção pode inclusive ser usado como uma forma de intimidação e de controle do cônjuge que sofre abusos. A chamada intimidatory litigation pode ser muito prejudicial tanto ao cônjuge vítima, quanto à criança, especialmente se houver um desequilíbrio financeiro entre as partes.
A Convenção não pode ser usada como instrumento para que o genitor abusivo continue o padrão de abusos já existentes. O desequilíbrio de poder entre as partes deve ser considerado pelos juízes que analisam a violência doméstica, já que muitas vítimas são intimidadas de modo a não deixar claro o verdadeiro quadro de abusos, gerando o risco de uma decisão que prejudique muito a criança.
Objetivando fornecer mecanismos de proteção à mulher vítima de violência doméstica, a partir de 2010, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), através de sua ouvidoria, passou a receber pedidos de mulheres que foram vítimas de violência no exterior por parte de seus maridos ou companheiros21, vindo a SPM desenvolver serviço de auxílio às brasileiras, vítimas de violência processadas por sequestro internacional de crianças, migrantes nas fronteiras secas, estrangeiras em situação de prisão e vítimas de tráfico internacional para permitir que tenham acesso à serviços de assistência jurídica. Em quatro anos de atuação a Ouvidoria da SPM chegou a receber trinta processos relativos à Convenção da Haia.
A partir desse serviço e da identificação das primeiras demandas a SPM firmou parceria com a Autoridade Central da Administração Federal (ACAF), órgão responsável pela aplicação da Convenção no Brasil e com a Advocacia Geral da União, órgão responsável pela judicialização das demandas, após tentativas de acordo. Estabeleceu-se, então, um fluxo de recebimento e encaminhamento dos processos, no intuito de possibilitar que a Ouvidoria pudesse, antes do ajuizamento da demanda de sequestro ela AGU, entrar em contato com a mulher e propiciar a sua defesa, a fim de viabilizar a produção de provas e conseguir a exceção da aplicação da Convenção da Haia23.
Por meio desses atendimentos, pela primeira vez, as autoridades brasileiras puderam conhecer o perfil das brasileiras que sofriam violência doméstica no exterior.
De forma muito inovadora, tida como legislação de grande importância e referência mundial no que concerne o combate à violência doméstica, o Brasil se revela diferente das demais nações ao fazer vigente a Lei nº 11.340/0624, que considera a violência doméstica como ato atentatório à dignidade humana, pelo que deve ser combatida pelo Poder Público e toda a sociedade, não fazendo qualquer sentido que esse mesmo país se omita nos casos em que brasileiras informam a ocorrência da violência doméstica. A legislação brasileira também destaca a importância da permissão de procedimentos, como perícias técnicas durante o procedimento judicial e antes de determinar o retorno da criança ao país de residência habitual, vez que este também pode ser um instrumento a facilitar o fim do procedimento.
“CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. REQUERIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS. ARTIGO 15 DA LEI N. 11.340/2006. FACULDADE CONFERIDA À VÍTIMA DE PROCESSAR O PEDIDO EM SEU DOMICÍLIO. DÚVIDA QUANTO AO DOMÍCILIO. AUSÊNCIA DE ELEIÇÃO DE FORO. APLICAÇÃO DA REGRA GERAL. ARTIGO 70 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. LUGAR DA INFRAÇÃO. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO JUÍZOSUSCITADO. 1. O artigo 15 da Lei n. 11.340/2006 faculta, por opção da ofendida, a escolha do juízo competente para os processos cíveis regidos pela Lei Maria da Penha, dentre os quais pode ser escolhido: a) do seu domicílio ou de sua residência; b) do lugar do fato em que se baseou a demanda; c) do domicílio do agressor. 3. Conflito Negativo de Jurisdição conhecido para declarar competente o Juízo Suscitado como competente para a análise do requerimento de medidas protetivas de urgência.” (Acórdão n. 777751, Relator Des. ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, Câmara Criminal, data de julgamento: 7/4/2014, publicado no DJe: 10/4/2014.)
Para fazer proteger as mulheres vítimas de violência doméstica no exterior, Com base em relatórios da Comissão de Direitos Humanos do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo, presidida pelo advogado Ricardo Sayeg, o deputado federal Marcelo Ortiz apresentou, em julho de 2018, à Câmara um Projeto de Lei que altera a lei Maria da Penha para permitir que mulheres brasileiras, vítimas de violência doméstica no exterior, possam optar por seu domicilio original para os processos regidos pela lei, e nele permanecer até a definição judicial.
Segundo o Projeto de Lei, a mudança altera o artigo 15 da Lei Maria da Penha, para constar que “...caso seja de nacionalidade brasileira e esteja sofrendo violência em paı́s estrangeiro, onde tem atual domicı́lio em razão de casamento, união estável ou outra causa de qualquer natureza, a ofendida poderá optar por seu domicilio original em território brasileiro para os processo civis regidos por esta lei, concedendo-se, pelo juiz competente, para a ofendida e a prole, se houver, salvo conduto para voltar ao território nacional e nele permanecer até a definição judicial”.
Tendo em vista a proteção do melhor interesse da criança, a Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças figura como instrumento de grande importância para viabilizar o retorno desses sujeitos ao país de residência habitual, nas hipóteses de remoção ou retenção ilícita, provocado por um dos genitores. Em que pese seu objetivo maior seja promover o retorno rápido e imediato da criança ao país de origem, o texto convencional também prevê hipóteses de exceção à sua aplicação, mais uma vez, tendo por base o resguardo do melhor interesse da criança envolvida no conflito, sendo preciso atentar-se as causas que fazem com que essas mulheres fujam dos países de residência habitual acompanhadas das crianças, sendo que uma dessas causas é justamente a violência doméstica.
A violência doméstica e familiar, que pode ocorrer de diversas formas, desde a física à psicológica, faz de mulheres reféns de seus esposos e companheiros, bem como expõem crianças à situações de risco, capazes de afetar o seu pleno desenvolvimento, infringindo de forma direta a Doutrina da Proteção Integral, insculpida no artigo 227 da Constituição Federal.
Não interpretar a violência doméstica como excludente, corre-se o risco de fazer da Convenção um instrumento violador de direitos humanos fundamentais, vez que pautando-se apenas na sua interpretação literal e na obsessão do retorno imediato da criança, desconsidera-se a existência da violência doméstica contra a mulher e, em alguns casos, até fomenta-se a sua perpetuação, vez que não deixa outra escolha a mulher a não ser retornar para o país de residência habitual acompanhando a criança.
Desse modo, a inclusão da situação de violência doméstica no rol de exceções previsto na Convenção de Haia não significa afronta aos objetivos da normativa, mas respeito à dignidade e integridade da mulher, bem como forma de auxiliar no combate às tantas situações de abuso e violência doméstica.
Em outras palavras, a figura do genitor abdutor está bastante afastada da figura original com base na qual a Convenção foi criada. Nesse contexto, Merle H. Weiner argumenta que diante dessa mudança, a obrigação de retorno da criança como fundamento último da Convenção faz menos sentido para as mães que estão fugindo de uma situação de abuso, e ao fazê-lo, levam seus filhos com elas26, tornando o texto da Convenção ultrapassado para a nova realidade em que vivemos.
Por mais que os principais documentos internacionais de tutela dos direitos humanos que há muito proclamam a igualdade de todos, não obstante, tal igualdade tem permanecido meramente formal, sendo árdua a tarefa de transformá-la em igualdade real entre mulheres e homens, principalmente quando se constata que a construção histórica dos direitos humanos sempre ocorreu com a exclusão da mulher e o reforço de ideologias patriarcais.
Em voto proferido quando do julgamento pela Quarta Turma do Egrégio Tribunal Regional Federal da Quarta Região, no Agravo de Instrumento 5010516-25.2012.404.0000/RS, o desembargador federal Luís Alberto D'Azevedo Aurvalle, em voto divergente, assinalou a excepcionalidade da aplicação das exceções descritas no artigo 13 da Convenção:
“Quanto à aplicação do dispositivo, cito resumo de decisão proferida pela Court of Appeal do Reino Unido:‘Grave risk - Art. 13(1) b)A very high degree of intolerability must be established to bring this provision into operation. This did not exist on the facts of the present case. Inadequate housing/financial circumstances did not prevent return. Moreover, even if Article 13(1)(b) were proved, it merely provides the court seized with a discretion whether or not to order the return of the child.
B. v. B. (Abduction: Custody Rights) [1993] Fam 32, [1993] 2 All ER 144, [1993] 1 FLR 238, [1993] Fam Law 198 Em outro caso, julgado pela High Court (Family Division), também do Reino Unido:Grave Risk - Art. 13(1) b)Evidence was adduced as to the mother's mental condition. The Court concluded that her depression was not of such a level that she would be unable to care for the children. Furthermore the older child was unlikely to be operating at a level of perception which would result in intolerable empathetic distress simply as a result of the mother's low mood. The Court further noted that the father had offered undertakings and that contact had been made with a judge in Alberta to ensure an expeditious custody hearing could be arranged on return. Re G. ‘(Abduction: Withdrawal of Proceedings, Acquiescence, Habitual Residence) [2007] EWHC 2807 (Fam)As decisões constam do banco de jurisprudência INCADAT- International Child Abduction Database (http://www.incadat.com/index.cfm), onde diversas outras decisões demonstram a necessidade de que uma circunstância extremamente grave e excepcional, que torne intolerável o retorno da criança, esteja presente para que seja invocada a previsão do art. 13, b, da Convenção de Haia. O simples desentendimento entre os pais não é suficiente para a caracterização dessa hipótese, devendo ser considerado que a situação de conflito gera desgaste emocional tanto para a criança quanto para seus genitores.” (Grifei)
Por tais razões, a existência de violência doméstica no país de origem serve para endossar a hipótese de exceção ao dever de retorno imediato da criança ao país de origem, em alinhamento ao fim almejado por todos os países aderentes à Convenção da Haia de 1980, tendo como proteção do interesse maior da criança.
Fabiano Rabaneda dos Santos é advogado especialista em Direito de Família e das Sucessões, membro da Sociedade Internacional de Direito de Família - International Society of Family Law.